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A CASA

         Alugada. Toda vez que me lembro da casa da minha infância, a primeira lembrança é que ela era alugada. Não nos pertencia. Pertencia à Dona Glória, uma viúva que, uma vez por ano, ia em casa para renegociar o valor do aluguel. Era um momento tenso e a casa, aborrecida, parecia que iria bater asas e fugir a qualquer momento.

             Não fugia. As raízes eram firmes e ela não tinha mesmo para onde ir.

          O quintal era mágico, tenho certeza. Como podia caber um canil, um labirinto, um circo, quadra de basquete, pista de bicicleta em tão poucos metros quadrados? Era um mistério para mim, aos cinco anos, e também agora, quando consulto minhas lembranças.

          A sala de jantar gostava de trocar de roupa e de ares. De manhã, era um escritório silencioso onde fazíamos a lição e meu pai lia o jornal. No final da tarde, bastava uma redinha na mesa e o ginásio de ping-pong estava montado. Era um pouco apertado, vire e mexe uma raquetada acabava indo parar na parede, mas o que são detalhes em um jogo tão divertido? Por fim, à noite, a sala vestia seu traje de gala ou de pijama, com toda a criançada de banho tomado, e então o jantar era servido.

          Não tínhamos um quarto para cada um. Dividíamos com os irmãos. Meninos em um, meninas em outro e a casa, depois de gritos, risadas e muita conversa fiada, deixava entrar o silêncio e ia aos poucos adormecendo.

          Nos dias de chuva, eu gostava de ficar atrás da cortina com o nariz pregado no vidro da janela vendo a rua. A enxurrada varria a calçada, os carros passavam molhando os coitados dos passantes de guarda-chuva, e o armazém de frente, onde reinavam absolutas minhas balas prediletas, ficava às moscas. Eu esperava ansiosa por um arco-íris ao final da chuva para ter a certeza de que o caldeirão de ouro estava lá, em algum lugar.

           A cozinha de Dona Rosa era um mundo à parte. Grande, espaçosa, era povoada por cheiros e gostos. Minha mãe reinava absoluta naquele espaço em que o rei não entrava, a não ser para beliscar uma coisinha e ainda assim, com o seu consentimento. Ali, aprendi que afeto não era abstrato. Tinha nome, receita, precisava de um monte de ingredientes e que só com muita magia se transformava.

         Aquela casa não voou, mas foi lá que aprendemos a voar. Devagar, seguros, felizes.

             Era uma gaiola de porta aberta.

 

SP 28/02/24

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