Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
A PAIXÃO SEGUNDO G.H.
O famoso livro A Paixão segundo G. H. de Clarice Lispector, é um dos livros mais importantes da escritora.
Se você nunca leu nada de Clarice recomendo que comece pelas crônicas, depois pelos contos e só então passe aos romances. Aliás, esse é sempre o melhor percurso de leitura, ou seja, começar pelas narrativas curtas e passar para as mais longas. Veja aqui no site, outras resenhas de diversas obras da escritora.
Eu considero Clarice Lispector uma das maiores escritoras brasileiras e esse livro A Paixão Segundo G. H. talvez seja o seu livro mais difícil, porque tem uma narrativa muito introspectiva, mas fique tranquilo que não é nenhum bicho de 7 cabeças e eu estou aqui justamente para lhe ajudar a compreender melhor essa narrativa que é tão singular.
O livro tem uma pequena nota em que a escritora dedica a narrativa a possíveis leitores. Nessa nota, ela diz que gostaria que A Paixão segundo G. H. fosse lido apenas por pessoas de alma formada. Veja, ela não está pedindo alguém mais velho, ou que tenha mais conhecimento literário, ela só quer alguém que entenda que toda vez que nos aproximamos de algo novo, é preciso tempo para compreender e que, às vezes, essa aproximação é dolorosa. Isso, a meu ver, é ter a alma formada na opinião da escritora.
Antes de entrar na história, Clarice faz um tipo de uma introdução em que ela se questiona sobre muitas coisas e fala de uma grande mudança, como se a vida toda ela tivesse sido de um jeito e algo aconteceu que a transformou. Ela não sabe então se segue transformada ou se retoma sua consciência anterior. Eu recomendo fortemente que você leia com atenção essa introdução, leia o livro inteiro e depois releia a introdução. E você vai perceber que ela vai fazer muito mais sentido.
Essa introdução lembra muito um tipo de introdução que há também em outro livro da Clarice, o famoso A Hora da Estrela, como uma marca da narrativa da escritora, sempre preparando um pouco o leitor sobre o que ele vai ler.
E do que se trata a história? Uma mulher mora em um grande apartamento, uma cobertura, e a empregada fora embora na véspera. Essa mulher, que é uma escultora, tem as suas iniciais G.H. gravadas em suas valises. Aqui, uma outra marca de Clarice Lispector: o uso apenas de iniciais. Ninguém sabe o que significa G.H. porque não é importante, como se ela deixasse ao leitor escolher um nome que começasse com G e um sobrenome com H. Vamos lembrar que em A Hora da Estrela, Clarice vai se utilizar novamente desse recurso, pois lá o narrador se chama Rodrigo S.M. Lembrando que, enquanto A Paixão Segundo G.H. é de 1964, A Hora da Estrela é de mais de 10 anos depois, de 1977.
Então, como está sem empregada, G.H. resolve limpar o apartamento começando do fundo para a frente, ou seja, ela quer começar pelo quarto de empregada que ela imagina que deva estar imundo, principalmente, por que o quarto era também um tipo de depósito onde GH guardava malas velhas, jornais antigos e papéis de embrulho.
Qual não é a sua surpresa quando ela entra no pequeno quarto e ele está completamente limpo, cheio de luz e sem a tralha toda que era guardada ali. Só havia uma cama, um guarda-roupa e as malas.
As paredes do quarto eram extremamente brancas, o que deixava tudo ainda mais claro, mas em uma delas fora desenhado um mural, a carvão. A autora do mural só poderia ter sido sua antiga empregada, Janair, que G.H demora para se lembrar do nome. Esse mural trazia o contorno de um homem e uma mulher nus e de um cão. Mas a autora explica que não era uma nudez que mostrava a genitália, mas a nudez de uma ausência de tudo, já que só havia o contorno. As três figuras olhavam para a frente como se não soubessem que do lado existia alguém. Aquela figura causou um mal estar à GH como se a antiga empregada, Janair, a estivesse censurando. Na verdade, a própria GH se censura por nunca ter prestando atenção à empregada da qual mal lembrava o nome, e que havia se tornado pelo tempo que trabalhou na casa, seis meses, um ser invisível para a patroa.
Ela então resolve entrar no quarto e limpá-lo. Entretanto, ao abrir a porta do guarda-roupa, ela leva um enorme susto, pois vê que dentro do armário há uma barata. G.H. detesta barata que a remete a sua infância pobre, na qual ela diz que havia percevejos, goteiras, baratas e ratos. Ela desiste da limpeza e vai sair do quarto quando tropeça entre o pé da cama e o guarda-roupa, e fica como se estivesse encurralada. Nesse momento, ela vê a barata saindo do armário e fecha a porta, matando a barata que fica ali, meia para fora, meio para dentro do armário.
É esse acontecimento absolutamente comum que vai dar origem a uma longa reflexão que a personagem narradora vai fazer sobre a morte, sobre a vida, enfim, sobre tudo. À medida que a gosma branca do corpo da barata vai saindo, G.H. vai fazendo as mais diversas relações com a sua própria vida.
Uma característica que marca a obra da Clarice Lispector é a narrativa introspectiva. Ela está sempre muito mais preocupada em falar do que ela sente, do que ela percebe do mundo e de si própria, do que em contar uma história. É o chamado fluxo de consciência em que ela vai pensando e sentindo coisas diversas e vai colocando no papel, às vezes, até de forma um pouco desordenada, que é um pouco a maneira como nós pensamos. A gente não se impõe: vou pensar sobre isso, depois vou pensar sobre aquilo. Um pensamento puxa outro pensamento, de forma involuntária.
A primeira coisa que a personagem narradora diz, abrindo o livro é: “estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender”. Então é sempre essa busca de tentar se entender e o mundo que a cerca e que interfere em seu viver, a marca principal da narrativa de Clarice.
Como essa é uma resenha e análise e não um resumo, é necessário a leitura do livro para ter a história completa, mas o que eu quero chamar a sua atenção é sobre as inúmeras vezes em que Clarice fala de amor nesse livro. Gosto de um trecho em que ela diz como que falando para a barata: “Não vou fazer nada por ti porque não sei mais o sentido de amor como antes eu pensava que sabia. Também do que eu pensava sobre amor, também disso estou me despedindo, já quase não sei mais o que é, já não me lembro.”
G.H. diz que por ter mergulhado no abismo é que está começando a amar o abismo de que é feita. Amar a si própria, ter a coragem de mudar, de amar coisas e pessoas que não se ama, entender a paixão, ver o tédio de uma relação amorosa sem se incomodar, perceber que o tédio era apenas um amor delicado.
A Paixão Segundo G. H. não é um livro para se ler apenas uma vez. São necessárias várias leituras, em diferentes fases da vida, para se compreender um pouco mais sobre o mundo da genial Clarice Lispector.
Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=yKxrNRAaeiU&t=498s
FICHA TÉCNICA
Título Original – A Paixão Segundo G.H.
Edição Original – 1964
Edição utilizada nessa resenha: 2020
Editora - Rocco - Rio de Janeiro
Páginas: 188