Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
A RELÍQUIA
A Relíquia, de Eça de Queiroz, é um dos livros mais importantes do escritor português. Quando foi lançado, no século XIX, foi publicado aqui no Brasil em pequenos trechos que saíam no Jornal A Gazeta de Notícias, um dos jornais mais lido da época, para o qual também escrevia Machado de Assis.
Eça de Queiroz foi um dos mais notáveis escritores em língua portuguesa e contemporâneo do nosso Machado de Assis. Isso quer dizer que ele nasceu e viveu no século XIX. Eça escreveu outros romances famosos como O crime do Padre Amaro, Primo Basílio e Os Maias, que se tornou, inclusive, minissérie na Rede Globo.
Eça fez algo raro naquele tempo, que foi uma viagem para o Egito e Palestina e serão as anotações dessa viagem, que ele vai usar para escrever A Relíquia, um romance realista, que quer mostrar os personagens e os cenários como eles realmente são. Desta forma, os personagens de A Relíquia têm qualidades e defeitos como qualquer pessoa. Não há o verniz do romantismo em que todos os personagens eram belos.
Junto ao título, como subtítulo, Eça escreve: Sobre a nudez forte da verdade – o manto diáfano da fantasia. E o que significa isso? Significa que, apesar da verdade nua e crua, é possível cobri-la com um pouco de fantasia. Diáfano significa transparente, límpido, ou seja, por pior que seja a verdade, sempre é possível deixá-la mais amena com um pouco de fantasia, ou talvez que não exista verdade que não possa ser manipulada.
No prefácio, o personagem principal chamado Teodorico Raposo, que os amigos depois vão apelidá-lo de Raposão, nos conta que será um livro de Memórias, sendo assim, como todo livro de Memórias, será narrado em primeira pessoa. É claro, que o nome, já é um bom indicativo da personalidade do protagonista, já que toda raposa é astuta e pronta a dar o bote.
Ainda no prefácio, Raposo diz que fez uma viagem a Jerusalém e que foi essa viagem a responsável por uma grande transformação na sua vida, tanto na parte material como espiritual. Conta também que teve como companheiro de viagem, o pesquisador alemão de nome Topsius, doutor pela Universidade de Bona.
Acabado o prefácio, o protagonista começa as suas memórias desde o seu nascimento. O leitor fica sabendo que sua mãe morreu no parto dele e que, quando ele tinha apenas 7 anos, seu pai também morreu. Teodorico, então, foi morar com a irmã de sua mãe, Tia Maria do Patrocínio, que ele vai chamar de Titi.
A tia Patrocínio é uma beata amargurada que vê mal em tudo. Ela vai criar o sobrinho com muita rigidez e ele a obedece porque depende dela. Aliás, ela é muito rica. Quando Raposo se torna adulto, ele vai estudar em Coimbra e descobre que a vida não é só reza e penitência, mas também que pode ser prazer. Só que como para sua tia, tudo é errado, ele vai esconder dela o que faz e como se diverte e levar uma vida dupla. Na frente da tia ele é um religioso tão beato quanto ela, mas quando a titi está longe, Raposão gosta da boa vida e das mulheres.
Mesmo sendo o único herdeiro da tia, ele tem medo de ser deserdado e ela deixar sua fortuna para a igreja. Por isso, sempre tenta agradá-la. Reza o terço com a tia, fala como um carola e é todo certinho. A tia nem suspeita que ele tem amantes e se diverte bastante.
As únicas pessoas que frequentam a casa da tia Patrocínio para um jantar aos domingos são o padre Pinheiro, o padre Casimiro e o Dr. Margaride, um juiz aposentado, amigo da família. Certo domingo, estão todos jantando quando vem o assunto de cada um contar seu grande desejo. Teodorico, cauteloso, diz que seu desejo é apenas rezar com a tia, mas o dr. Margaride insiste para que ele fale outro desejo e assim, meio relutante, ele admite que gostaria de conhecer Paris, pois um amigo havia dito que era uma beleza de cidade para se divertir. Teodorico, claro, não revela isso, mas inventa que era por causa das igrejas da França. E assim, cada um passa a dizer qual lugar gostaria de conhecer. Até que o Dr. Margaride diz que gostaria de conhecer a Palestina, a terra sagrada. E então o Padre Pinheiro conta que quem ia à Terra Santa em peregrinação tinha o perdão dos pecados não apenas para si, mas também para uma pessoa querida da família que, por qualquer razão, estivesse impedido de fazer a viagem.
Ao ouvir isso, a titi resolve mandar Teodorico fazer a viagem a Jerusalém. No começo, ele não gostou da ideia, mas depois lembrou que, antes de chegar à terra santa, ele iria passar por muitos outros lugares onde poderia se divertir, bem longe de Dona Patrocínio. Afinal era uma viagem no século XIX, quando ainda não existiam aviões. Antes de partir, Raposo promete à tia que lhe trará uma verdadeira relíquia da terra santa.
Toda essa primeira parte do livro é para nos apresentar as características dos dois personagens principais, o Teodorico e sua tia, Dona Patrocínio, e para mostrar o cenário da vida que eles levavam e a dependência financeira que ligava o Raposo à sua tia.
Durante a viagem de ida, Raposo conhece o Professor Topsius que vai instruindo-o sobre os lugares que eles vão conhecendo. A cada escala que eles faziam, Teodorico Raposo ia se envolvendo com mulheres locais. No Egito, ele conheceu a inglesa Miss Maya e, na hora de ir embora, ela lhe dá de presente sua camisola de dormir na qual ela escreve uma dedicatória e assina como MM. Como a mala já estava fechada e não cabia mais nada, ela faz um embrulho e Teodorico Raposo o leva na mão.
Ainda durante a viagem, em um acampamento perto do Rio Jordão, ele vê uma planta da mesma espécie da qual foi feita a coroa de espinhos de Cristo na Cruz e imagina que sua tia iria adorar um presente desses. Ele pensa que poderia até dizer a ela que era a verdadeira que ela acreditaria. Assim, ele corta a planta, ajeita-a como uma coroa e manda fazer um embrulho. Raposo fica muito satisfeito com a ideia do presente porque ele não podia levar pra tia uma relíquia melhor: a “verdadeira” coroa de Cristo.
Ainda no acampamento, no meio da noite, Dr. Topsius acorda o Raposo, diz que é Páscoa, e que eles precisam ir para Jerusalém. O Raposo estranha, mas o Dr Topsius diz que precisa estar em Jerusalém para ver viva essa página do Evangelho.
Nesse momento, a narrativa fica muito diferente do resto do livro. É como se eles fossem transportados para a época de Cristo. Várias vezes dá a impressão de que nada daquilo que os dois personagens estão vivendo é real, mas apenas um sonho que o Raposão está tendo. Por outro lado, pode ser uma encenação de Páscoa do que aconteceu. Não é possível precisar e cremos ter sido exatamente essa a intenção de Eça de Queiroz. É uma parte longa do livro e talvez a mais difícil. Não fica claro de que seja um sonho ou uma encenação, e muitos críticos chamam de episódio fantástico dentro do romance realista.
Na história vivida por Raposão, os fatos finais da vida de Cristo são narrados. Cristo é condenado a morrer na cruz como na história que conhecemos, entretanto, a ressurreição de Cristo não ocorre. Os amigos de Jesus haviam dado a ele um vinho narcotizado para que ele parecesse morto. Reivindicaram seu corpo e o enterraram em uma cripta que ficava, conforme a tradição, com a tampa aberta. À noite, eles levaram o corpo de Cristo, mas não conseguiram reavivá-lo e Jesus morreu. Topsius então diz para Raposo que já podem ir embora, voltar para o acampamento, pois ele já sabia o que iria acontecer: no dia seguinte, quando as mulheres fossem à cripta a veriam vazia e Maria Madalena sairia dizendo a toda Jerusalém que Jesus havia ressuscitado e assim nasceria o cristianismo. Seria, de acordo com a história de Eça de Queiroz, uma falsa notícia que o tempo tornou verdadeira de tanto ser repetida.
Na viagem de volta a Portugal, Raposo se livra do presente de Miss Mary dando-o a uma mendiga e, finalmente, chega em casa de Titi. Com toda a pompa e na frente dos padres, Raposo entrega à tia, a espetacular relíquia. Entretanto, quando a tia abre o pacote não era a coroa de espinhos e sim, a camisola de Miss Mary. Ele havia, sem querer, trocado os pacotes. Na mesma hora, a tia o expulsa de casa e ele perde a herança.
Raposo vai tentar sobreviver vendendo as relíquias da terra santa que ele havia trazido. Mas, depois, quando essas acabam, ele passa a fabricar em Portugal cópias das relíquias, mas as vende como verdadeiras. Com o tempo, isso também não dá certo. Quando está completamente sem dinheiro, ele encontra Crispim, um antigo colega de escola. Crispim fica com pena do antigo colega e lhe oferece emprego. Pela primeira vez na vida, Raposo então começa a trabalhar e a tentar ser honesto. Ele se casa com a irmã do Crispim, sobe na vida, mas quando supomos que ele está modificado, Teodorico Raposo fica sabendo que a tia havia morrido e deixado sua fortuna para um jovem padre aproveitador e pensa que, se na hora que o embrulho fora aberto, ele tivesse dito que aquela era a camisola de Maria Madalena, as mesmas iniciais de Miss Mary que estavam na camisola, a tia teria acreditado. Ou seja, Eça de Queiroz nos mostra que é só questão de usar a mentira certa e mentir com mais convicção que todos acreditarão que é verdade.
Obviamente, o livro é uma crítica de Eça às verdades religiosas e sociais que a sociedade afirma e reafirma ao longo do tempo, de acordo com seus próprios interesses. E, nesse sentido, é um livro atemporal. É possível fazer um paralelo da história escrita no século XIX com a sociedade brasileira de hoje. As chamadas verdades sociais que as pessoas carregam. As fake news ou notícias falsas que estão em todas as redes sociais para que as pessoas possam ser facilmente manipuladas.
Este é o ponto central do livro. O que é verdade, o que é mentira ou fantasia, e como esses dois conceitos de verdade e mentira podem ser próximos. Como a mentira pode ser sempre manipulada para parecer verdadeira.
Ao final do livro, Raposo reclama com Cristo pelas suas desgraças e como os pacotes puderam ser trocados. E uma voz responde, lembrando como ele havia sido falso a vida inteira. A voz finalmente diz: "Eu não sou Jesus de Nazaré, nem outro Deus criado pelos homens (...). Sou anterior aos deuses transitórios: eles dentro em mim nascem, dentro em mim duram; dentro em mim se transformam (...). Chamo-me a Consciência"....
É a maneira encontrada por Eça de Queiroz para nos mostrar que a verdade não está em uma religião, mas na nossa consciência.
Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=HZM0D3qm_uA
FICHA TÉCNICA
Título Original – A Relíquia
Edição Original – 1887
Edição utilizada nessa resenha: 1951
Editora: Lello&Irmãos Editores – Cidade do Porto
Páginas: 350