Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
A TORTA
Quando eu era criança ou adolescente, não existia freezer. Meu Deus, como sou antiga!!
Pois é, a única coisa que morava no congelador da geladeira eram forminhas de gelo e, de vez em quando, um pote de sorvete. Comida congelada não fazia parte do repertório de ninguém.
Aos dezoito anos, já era professora de língua portuguesa, mas como o salário de professora nunca foi uma maravilha, para complementar a renda, comecei a dar aulas particulares. O meu primeiro aluno foi o cozinheiro de uma grande indústria alimentícia e que trabalhava na cozinha experimental da companhia, criando e testando novos produtos. Entendia tudo de comida, mas precisava de ajuda nos mistérios da nossa difícil língua-mãe.
Para me agradar, ele sempre me esperava com algum quitute, principalmente, quando descobriu que eu vinha direto da escola e depois da sua aula, ainda iria para a faculdade. Tempo para me alimentar direito era um luxo que eu realmente não tinha. Fazia duas faculdades e tinha dois empregos.
Um dia, insistiu para que eu experimentasse uma torta de vitela. Não me fiz de rogada. Depois de eu quase lamber os beiços, quis saber a minha opinião. Estava uma delícia, claro! Foi então que ele me contou que a tal torta estava congelada há um ano. Não sei bem o que senti. Era algo completamente novo e o novo sempre assusta. Imediatamente pensei que, provavelmente, iria ter um treco e morrer. Como assim? Era uma torta que já tinha um ano de idade?! Alimentos faziam aniversário?
Fui para a faculdade super atenta aos sintomas do meu corpo e quando cheguei em casa, depois da aula, contei para a minha mãe a grande novidade. Dona Rosa, mineiríssima, e preocupada em só nos alimentar com alimentos frescos, ficou apavorada. Sua filha tinha comido algum tipo de veneno.
O tempo passou. Os freezers chegaram às lojas e as comidas congeladas ganharam espaço nos supermercados. Mas até hoje, enquanto escolho um congelado, penso na minha torta de vitela.
Fui uma pioneira ou uma cobaia? Não sei bem! O fundamental é que não morri. E ganhei essa história que eu adoro contar.
SP 13/08/24