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ALGUMA POESIA

          O livro de poemas Alguma Poesia foi o primeiro livro lançado por Drummond, no início de sua carreira, em 1930. Hoje em dia, nós falamos muito de autopublicação, mas o poeta mineiro já fazia isso naquela época. A publicação de Alguma Poesia foi feita pelo próprio Drummond que pagou do bolso a impressão de 500 exemplares, impressão essa que foi feita nas gráficas da Imprensa Oficial e, já que ele era funcionário público, claro, obteve um bom desconto. Ele chegou a criar um selo de uma editora imaginária chamada Pindorama para que as pessoas não soubessem que era ele que estava se autopublicando.

          Antes do lançamento de Alguma Poesia, o poeta que trabalhava como jornalista, já havia publicado alguns poemas seus em revistas, já tinha ganho um concurso com um conto e havia conhecido os modernistas da semana de 22, como Oswald e Mario de Andrade, quando eles estiveram em Belo Horizonte. Aliás, Mario de Andrade e Drummond se corresponderam durante muitos anos e é pra Mario que Drummond vai dedicar o livro Alguma Poesia.

         Um dos poemas que já havia sido publicado solto e que teve uma enorme repercussão foi No Meio do Caminho e que também está presente em Alguma Poesia.

No Meio do Caminho tinha uma pedra

Tinha uma pedra no meio do caminho

Tinha uma pedra

No meio do caminho tinha uma pedra.

 

        Essa é só a primeira estrofe do poema. E por que esse poema fez tanto barulho?

       Porque falava de algo que parecia não ter qualquer importância como uma pedra. Até então, acreditava-se que somente dos grandes temas, principalmente dos sentimentos, é que deveria se ocupar um poeta. E também por que No Meio do Caminho não tinha métrica ou rima, como as pessoas estavam acostumadas.

      Quanto à estrutura, o livro tem 49 poemas. Há alguns poemas longos, um maior que todos que se subdivide em outros poemas, mas a grande maioria é de poemas curtos, às vezes, apenas de 3 versos.

       Lendo Alguma Poesia, nós podemos perceber a timidez e humildade do poeta que muitas vezes fala em seus poemas de si próprio como logo no primeiro poema, chamado de Poema de Sete Faces, em que Drummond diz na primeira estrofe:

Quando nasci, um anjo torto

Desses que vivem na sombra

Disse: Vai Carlos! ser gauche na vida.

 

        É importante perceber que não era um anjo bonito, luminoso, como a imagem que costumamos ter dos anjos, mas um anjo que era torto, que vivia na sombra, o que nos remete ao escuro, aquilo que não tem brilho. Além disso, esse anjo diz para Carlos ser gauche na vida quase como uma sentença que não pode ser alterada.

     Gauche é uma palavra de origem francesa, que quer dizer esquerda, e quando foi incorporada à língua brasileira ganhou o sentido de uma pessoa insegura, sem determinação, ou seja, o que o anjo prevê é que ele vai viver como que em uma contramão, no sentido contrário ao da maioria das pessoas e talvez por isso não terá um destino grandioso.

        No mesmo poema, mais pra frente, o poeta diz que tem poucos e raros amigos e ainda completa:

Meu Deus, por que me abandonaste

Se sabias que eu não era Deus

Se sabias que eu era fraco.

           Claro que existe uma intencionalidade ao escolher esse poema para abrir o livro. Ele se diz gauche, se diz fraco, se diz sério, simples, com poucos amigos, o que já conquista a simpatia do leitor para os poemas que virão a seguir.

        Então, uma das marcas do livro é que o poeta se coloca na quase totalidade dos poemas. Fala da sua infância, das suas lembranças e ele não é apenas um observador das cidades, das coisas ou dos fatos, mas também um participante. Ele usa constantemente a primeira pessoa para se colocar nos poemas.

       Mario de Andrade ao escrever para Drummond chegou a chamar a atenção para isso dizendo que o livro era “excessivamente individualista”, mas dizendo que isso não chegava a ser um defeito. Isso é o que chamamos do Eu lírico que aparece em poemas, ou a maneira como o poeta traz o mundo exterior para ser processado e sentido pelo seu mundo interior.

        Eu disse anteriormente, que há um grande poema que se divide em outros é o poema chamado Lanterna Mágica, os poemas que compõem o Lanterna Mágica são poemas que têm as cidades mineiras como tema, como Belo Horizonte, Sabará, Caeté, Itabira, São João Del Rei, mas também Nova Friburgo e Rio de Janeiro e ele termina com um poema de apenas dois versos chamado Bahia, que diz:

É preciso fazer um poema sobre a Bahia...

Mas eu nunca foi lá.

       Ou seja, o poeta foi capaz de fazer poemas para cidades que ele havia nascido como Itabira, ou vivido como Belo Horizonte, ou outras nas quais ele houvesse tido alguma experiência, mas se sentia incapaz de falar das cidades baianas simplesmente porque nunca tinha ido à Bahia.

     Ao buscar cenários nacionais, Drummond também faz uma crítica aos escritores que buscavam sempre se parecer com escritores estrangeiros, por isso que  antes desse longo Lanterna Mágica, ele traz o poema Europa, França e Bahia que fala justamente dessa pretensão de outros autores. Há um verso em que ele diz claramente:

Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa.

        A posição dos poemas nos livros, a ordem em que eles aparecem é um recurso muito caro a Drummond. Nas minhas análises, eu falo muito sobre isso, principalmente quando analiso Claro Enigma, outro livro do poeta. Se você ainda não leu a resenha aqui no site, recomendo que leia, pois ajuda a entender como a ordem dos poemas é um itinerário de leitura que o poeta quer que seu leitor faça.

       Então, pegando o exemplo que eu acabei de citar, primeiro ele fala da Europa, diz que está cheio da Europa e, em seguida, traz vários poemas de cidades brasileiras e de como cada uma delas tinha lhe tocado de forma especial. Se ele não conhecia a Europa não podia falar da Europa da mesma maneira que não podia falar da Bahia.

      O nacionalismo e a crítica a escritores que preferem o estrangeiro é um tema muito presente no livro. Em outro poema chamado Fuga, Drummond é ainda mais explícito.  Diz:

O poeta vai enchendo a mala,

Põe camisas, punhos loções

Um exemplar da Imitação

E parte para outros rumos

        Em outra estrofe diz:

Povo feio, moreno, bruto,

Não respeita meu fraque preto.

Na Europa reina a geometria

E todo mundo anda – como eu – de luto

        E ainda completa mais pra frente dizendo que no Brasil só tem canibais.

       Claro que o poeta está sendo irônico, imaginando um poeta que abandona o Brasil em fuga para viver na Europa porque é mais chique.

      Além do eu lírico, do nacionalismo, um outro tema que domina o livro e vai estar sempre muito presente na obra de Drummond é o amor. Há vários poemas que falam sob ângulos diferentes do amor. Desde o desencontro do amor no poema Quadrilha:

João que amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim...

      Como também o amor que atravessa o tempo em Balada do Amor através das idades ou em Quero me Casar que fala do amor que tem pressa.

    Por fim, o último tema é o fazer poético e a sensibilidade que o poeta possui. Creio que o poema Explicação, o antepenúltimo do livro deva ser lido com muita atenção porque ele reúne ao mesmo tempo o eu lírico, o nacionalismo, o amor e a importância do fazer poético. É um poema um pouco mais longo que começa assim:

Meu verso é minha consolação.

Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.

     A pessoalidade é uma marca muito forte desse livro. Os poemas falam de coisas, lugares fatos e sentimentos vivenciados por Drummond. E aí, no mesmo poema Explicação, ele vai dizer várias coisas e terminar com dois versos que dizem:

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.

Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

      Ou seja, ele se desculpa e se define.

      Um poema que é completamente diferente do resto do livro e que afirma a filiação do poeta ao modernismo, o que lhe dá liberdade para fazer o que deseja sem se preocupar com a forma é o poema Outubro 1930, que fala da Revolução de 30.

      E por que esse poema é tão diferente? Por que ele mistura verso com prosa. Há uma estrofe, depois um texto corrido, depois novamente uma estrofe e outro texto corrido e assim sucessivamente.

      Isso é completamente novo e funciona quase como uma experimentação de Drummond que tenta quebrar os limites entre os gêneros. Além disso, em Outubro 1930 já há uma pequena tentativa do poeta em se afastar do seu eu lírico tão predominante, abordando um fato político em que seu eu não aparece nem como observador.

      Por fim, o último poema, chamado propositalmente de Poema da Purificação, é praticamente uma resposta ao primeiro poema, que eu já falei antes, o chamado O Poema de 7 faces. Se no primeiro poema um anjo torto dizia que ele iria ser um gauche, no último poema diz:

Depois de tantos combates

O anjo bom matou o anjo mau

E jogou seu corpo no rio.

As águas ficaram tintas de um sangue que não descorava

E os peixes todos morreram.

Mas uma luz que ninguém soube

Dizer de onde tinha vindo

Apareceu para clarear o mundo

E outro anjo pensou a ferida

Do anjo batalhador.

 

       Isso é muito bonito porque é o poeta que, mesmo marcado para não dar certo, trava inúmeras batalhas, mas outro anjo se comove das feridas e algo clareia. Ele, o poeta, se purifica. E novamente aqui eu chamo a sua atenção para o percurso e como o último poema só tem sentido se lembrarmos do primeiro.

         Quanto à estrutura dos versos você não pode esquecer que são versos livres que não usam a rigidez da forma que os poemas clássicos usavam, quando todo verso tinha de ter rima e número certo de sílabas. Os versos de Alguma Poesia são livres justamente porque não seguem qualquer uma dessas regras, podendo até, no mesmo poema, ter estrofes metrificadas com outras sem qualquer métrica.

       Não podemos esquecer que Drummond era modernista. Eu disse antes que ele conheceu os modernistas que estiveram em BH, mas Drummond não participou da semana de 22, ou seja, não se engajou imediatamente ao movimento modernista. Ele vai ser o que nós chamamos da segunda geração de modernistas, ou geração de 30.

      Resumindo, podemos marcar quais as características principais de Alguma Poesia:

    - São quatro temas que prevalecem nos poemas: o eu lírico, o nacionalismo, o amor e o fazer poético. Há poemas com outros temas? Claro que sim, mas não prevalecem.

     - Quanto à linguagem, o vocabulário não é rebuscado, ele quer falar simples, de forma mais coloquial.

      - É um livro individualista, em que o poeta se coloca o tempo todo em primeira pessoa. É a sua visão do mundo e das coisas. Em alguns poemas ele é um observador, mas, na grande maioria, as coisas acontecem a partir dele e de suas ações, ou seja, ele participa.

     - Por fim, como modernista, Drummond está muito mais preocupado com o conteúdo do que com a forma dos versos, por isso não se preocupa com rima ou métrica, mas é preciso lembrar que o percurso, ou a ordem em que os poemas aparecem é intencional e importante para guiar o olhar do leitor.

Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=4tj9qP-VcxI

FICHA TÉCNICA

Título Original – Alguma Poesia

Edição Original – 1930

Edição utilizada nessa resenha: 1983

Editora - Aguilar

Páginas: 43

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