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CAMPO GERAL

         Antes de começar a falar de Campo Geral, do autor mineiro João Guimarães Rosa, é preciso contar a origem desse livro. Em 1956, Guimarães Rosa lançou um livro com 7 novelas, em dois volumes, chamado Corpo de Baile. As novelas eram independentes uma da outra, podendo ser lidas separadamente sem nenhum prejuízo de entendimento.

          Na segunda edição, o autor juntou as 7 novelas em um único volume e depois, nas outras edições, ele resolveu dividir as novelas em 3 livros. Campo Geral era uma das duas novelas do livro chamado Manuelzão e Miguilim, da edição que eu utilizo nesse resumo e análise, mas hoje, é bastante comum Campo Geral vir sozinho em uma edição.

          Quem nunca leu nenhuma obra de Guimarães Rosa, pode estranhar um pouco a narrativa, achar difícil e desanimar. Entretanto, é só um estranhamento inicial que, à medida que a leitura for avançando, logo passa. É uma escrita diferente, em que Guimarães tenta reproduzir a maneira como falam os habitantes daquela região, sertão de Minas Gerais, que ele, como mineiro, conhece bem. Então esse já é o primeiro ponto que não se pode esquecer. É uma história ambientada no sertão de Minas, em um local conhecido como Mutúm. Entretanto, essa linguagem específica, vai ser muito enriquecida por Guimarães Rosa, transformando-a em uma prosa poética. O autor usa de tanto lirismo que chegou a chamar as sete novelas de poemas, o que, na verdade, não são, por isso, depois, ele abandona essa definição.

          Entretanto, o fato de se passar em uma determinada região, não quer dizer que o tema da trama se restrinja apenas àquela região. E esse é um dos grandes talentos de Guimarães Rosa. O escritor pega um menino específico, de uma família específica, de uma região específica do Brasil e, mesmo com todas essas especificidades, consegue escrever uma história que é universal, pois vai falar de coisas que acontecem em muitas famílias.

E esse é a segunda característica: a universalidade da obra.

          A história conta um pouco da vida da família do menino Miguilim, quando Miguilim tinha apenas 8 anos. Eles moravam em um trecho de matas, por isso mesmo, muito isolado, chamado Mutúm. Miguilim tinha quatro irmãos que moravam com ele: Andrelina, a mais velha, chamada por todos por Drelina, a Chica, o Dito e o Tomezinho, que era o caçula. Mas tinha também o irmão mais velho de todos, chamado Liovaldo, que havia ido embora do Mutúm para estudar na cidade e morar com um tio.

          Na casa havia também o pai, chamado Bernardo, e a mãe, a Nhanina, mais o Tio Terêz, irmão do pai, e a vó Izidra, que era, na verdade, uma tia avó, tia de sua mãe. Além de Rosa e Maria Pretinha, as empregadas, havia também Mãitina, uma velha empregada que tomava cachaça e não dizia coisa com coisa, além, claro, de muitos cachorros. Junto à família também existiam os vaqueiros que ajudavam no trabalho e interagiam com a família.

       Miguilim é o personagem principal. Será pelos olhos de Miguilim que nós, leitores, vamos conhecendo a história, mas o narrador não será em primeira pessoa, mas em terceira. Será um narrador que, ao contrário do que normalmente acontece com o narrador em terceira pessoa, ele não é onisciente, ele não está em todo lugar. Ele segue Miguilim. Nós só vemos o que Miguilim vê. Só ficamos sabendo do que Miguilim sabe. Então, várias questões não são muito claras, porque nem tudo Miguilim, que é uma criança, sabe do mundo dos adultos.

         Logo que a história começa, Miguilim está voltando com o Tio Terez do vilarejo onde havia ido para ser batizado. E, logo nas primeiras páginas, Miguilim e o irmão Dito, que é o mais próximo, o mais companheiro de Miguilim, ouvem uma briga do pai com a mãe, em que o pai está gritando e ofendendo a mãe. Dito diz a Miguilim que o pai não quer que a mãe converse nunca mais com o Tio Terez.

       Tem uma frase que mostra que, apesar de ser tão pequeno, Miguilim já sabia ou desconfiou rapidamente do motivo da briga. A frase é: “Miguilim entendeu tudo tão depressa, que custou para entender.”

         Parece uma contradição se ele entendeu depressa, como custou a entender? E aqui é necessário assinalar uma terceira característica da escrita de Guimarães Rosa. É preciso sempre pensar em Guimarães como um escultor, preocupado com cada palavra, com cada frase, milimetricamente. Nada na sua escrita é por acaso. Tudo tem uma intenção.

        Na verdade, Miguilim concluiu rapidamente que a mãe e o Tio Terez deviam estar traindo seu pai. Por outro lado, ao dizer que ele custou a entender, o escritor quer que nos coloquemos no lugar de uma criança de 8 anos que não entende os motivos, não entende nem o como e nem o porquê, mas percebe o fato. E, ao escutar a mãe chorando, conhecendo o gênio do pai, imediatamente diz a Dito que o pai não pode bater na mãe e corre para a sala onde os dois estão brigando, e se abraça à mãe que estava ajoelhada para protegê-la. Nesse momento, claro, toda a raiva do pai se volta contra Miguilim e é ele que apanha no lugar da mãe.

         Por fim, o pai o coloca de castigo sentado no tamborete, um tipo de banquinho, e sai de casa. Aliás, era  Miguilim, entre todos os irmãos, o que ficava mais de castigo no tamborete. E a regra era que quando um estivesse de castigo, os outros não podiam falar com ele. Mas Dito, que era ainda menor que Miguelim, era muito fiel ao irmão e disfarçando, sempre dava um jeito de ficar perto e conversar baixinho. Aliás, Dito é um personagem bastante interessante porque ele é pequeno, mas muito inteligente e sensato. Observador, é ele que conta a Miguilim muitas coisas que se passam em família.

          Quando Miguilim ainda estava de castigo, Tio Terez chegou em casa sem saber da briga. Imediatamente, Vó Izidra mandou que Miguilim saísse do castigo e fosse pra longe, mas Miguilim se escondeu para ouvir a conversa dos dois. Vó Izidra mandou que Tio Terez fosse embora para não voltar nunca mais. E o tio obedece, deixando a casa.

          A história continua mostrando o dia a dia da casa, a rotina dos irmãos e, principalmente, o amadurecimento de Miguelim porque é disso, principalmente, que se trata a história. Entre medos, inseguranças, descobertas, raivas, Miguelim vai crescendo e amadurecendo. Também, aos poucos, vamos sabendo que Miguilim tem uma saúde complicada. Como não havia médico na região era o senhor Deográcias, um entendido em remédios, que atendia os doentes. Contavam que o senhor Deográcias tinha sido excomungado porque ficou agachado dentro da Igreja. O nome do homem é Deo+gracias. E aí está uma ironia fina de Guimarães Rosa, pois é um homem excomungado, ou seja, expulso da igreja, e que dá graças. A quem dá graças? A Deus.

       Miguilim sabia que sua saúde não era boa e tinha muito medo de morrer. E isso é marcante em sua infância porque lhe dá uma sensibilidade ainda maior para tudo que está à sua volta.

       A linguagem, como já foi dito, não é apenas uma linguagem regional, mas é uma linguagem carregada de lirismo, de poesia. Tem um trecho muito especial e que é importante como exemplo. O trecho é:

“Eu vou ali, volto...” – Miguilim disse. Miguilim tinha pegado um pensamento quase que com suas mãos.

- Deixa ele ir, Dito. Ele vai amarrar-o-gato...”ainda escutava dizer o vaqueiro Jé.

“Mentira. Tinha mentido, de propósito. Era o único jeito de sozinho poder ficar, depressa precisava. Podiam rir, do que rissem, ele não se importava. Mesmo agora ali estava ele ali, atrás das árvores, com as calças soltadas, acocorado, fingindo. Ah, mas livre de todos: e pensava, ah, pensava!

Repensava aquele pensamento, de muitas maneiras amarguras. Era um pensamento enorme, aí Miguilim tinha de rodear de todos os lados, em beira dele. E isso era, era! Ele tinha de morrer?”

        Então Miguilim tinha tido um pensamento que era tão grande tão importante, que ele precisava ficar sozinho e mentiu que estava com dor de barriga. Amarrar-o-gato é uma expressão regional que significa fazer cocô. Esse pensamento era: Ele tinha de morrer?

        Claro que se fosse um outro autor poderia dizer tudo de uma maneira muito mais simples. Poderia ter dito, por exemplo, que Miguilim queria ficar sozinho porque estava pensando se tinha de morrer. Mas, como já dito antes, Guimarães Rosa não é um escritor qualquer. Sua narrativa é construída, não apenas preocupada com o conteúdo, mas igualmente com a forma. Não é apenas contar uma história, mas de que maneira contá-la.

         Esse é outro ponto que tem de ser fixado, exatamente esse cuidado com a forma que leva o autor, inclusive, a criar palavras, os famosos neologismos de Guimarães Rosa, palavras novas, inventadas.

         O pensamento de morte começa a ficar bastante forte em Miguilim, o que o leva a se isolar, mas, aos poucos, ao perceber que não morreu, isso vai diminuindo e ele retorna à vida normal. Vida de criança que vai crescendo na roça, querendo montar a cavalo sozinho, ajudar com os bezerros e que vai, devagar, também ganhando mais responsabilidade como levar a comida pro pai, mesmo tendo que passar por um pedaço de mato e tendo de enfrentar o medo.

         E um dia nesse caminho, surge Tio Terez pedindo para que Miguilim levasse escondido um bilhete a sua mãe e trouxesse a resposta no dia seguinte. Apesar de gostar do Tio, Miguilim sabia que aquilo era judiação com seu pai e do alto dos seus oito anos, ele ficou perdido sem saber o que fazer. Não conseguia decidir o que era certo e o que era errado. Pensou até em dizer que estava doente só para no dia seguinte não ter que ir na roça levar comida, mas criou coragem e foi e quando Tio Terez apareceu, começou a chorar e disse a verdade, que não tinha tido coragem de entregar o bilhete. Tio Terez compreendeu e enxugou as lágrimas do menino, avisando que estava indo viajar, morar longe dali.

      Para substituir Tio Terez e ajudar no trabalho da roça, o pai contratou o vaqueiro Luisaltino que iria passar uns tempos morando com eles. Luizaltino e a mãe de Miguilim ficaram mais próximos e um dia que o pai e a vó estavam fora, foram passear à noite. A mãe e Luizaltino conversando na frente, as crianças atrás. Luizaltino comentando que o mal eram os pais que casavam as meninas muito cedo, sem deixar que escolhessem o noivo.

         E a vida seguiu até um dia que o Dito pisou descalço em um caco de vidro, cortando o pé, fazendo um grande talho. A ferida infeccionou e o Dito foi ficando cada vez pior. Miguilim ficava ao seu lado, trazendo as notícias do que estava acontecendo na casa, inventando histórias compridas. Dito contou em segredo para Miguilim que a vó Izidra xingava a mãe deles quando não tinha ninguém por perto. Dito começou a ter febre alta e a ficar pior. Todo mundo rezando, chorando... até que Dito morreu. Miguilim sofreu muito. Adorava o irmão, era o seu grande companheiro.

          Mais uma vez o autor não expressa essa dor de uma maneira qualquer, mas com muita poesia. Ele diz: “Todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer” . 

        Miguilim entrou em uma fase de tristeza tão grande que ficou doente. Quando sarou todos davam muito serviço para ele se ocupar e não pensar na morte do irmão. Mas logo depois, ele ficou doente novamente. O autor não nos conta da última doença, mas como a barriga estava cheia de pintas vermelhos deveria ser um sarampo ou outra doença que costuma ser comum em criança. Ainda de cama, Miguilim ouve um dia uma grande gritaria e fica sabendo que o pai havia matado o vaqueiro Luisaltino e depois se matado, enforcado.

        Tio Terez, que estava trabalhando longe, quando soube da morte do Dito e do irmão, voltou pra casa para trabalhar na roça e ajudar a cunhada, de quem, obviamente ele gostava.               Um dia, quando Miguilim já estava melhor, aparecem dois homens no sítio. Um deles era médico, Doutor José Lourenço, que percebeu que Miguilim apertava os olhos para enxergar, ou seja, era míope. O médico emprestou seus óculos para Miguilim que, quando os colocou no rosto, passou a ver tudo de outra forma. Muito mais claro, muito mais nítido. E essa passagem do livro é bastante simbólica, como se daquele momento em diante, tudo tivesse ficado mais bonito em sua vida. Era uma maneira de mostrar que o sofrimento também estava chegando ao fim para Miguilim que foi convidado para ir morar na cidade com Dr Lourenço onde poderia fazer óculos próprios para criança e poder estudar. A claridade, a nitidez também significa que ele estava mais amadurecido e também sabia lidar melhor com suas dores.

           O livro termina com Miguilim, na hora de ir embora, pedindo os óculos emprestados ao Dr. Lourenço, mais uma vez, para poder enxergar cada membro de sua família e a beleza do Mutúm.

       Então resumindo, o que não se pode esquecer em Campo Geral:

  1. Mesmo sendo ambientada no sertão de Minas Gerais, trata-se de uma história universal. As inseguranças de uma criança como Miguilim, são inseguranças comuns a uma grande parte das crianças em qualquer lugar do mundo. Traições e brigas por motivo de ciúme também é uma questão universal, seja aqui, ou em qualquer outro país.

  2. A linguagem do livro é extremamente cuidada, original, carregada de lirismo. Guimarães cria expressões e palavras novas, os neologismos.

  3. A história é escrita em 3ª pessoa, mas o narrador não é onisciente, acompanha Miguilim. Só vê e sabe o que Miguilim sabe. E isso é importante, porque nos dá o tempo todo, a perspectiva da criança. Enxergamos a história pelos seus olhos, mesmo não sendo em primeira pessoa.

  4. O tema principal do livro é a infância, o processo doído de crescimento que todos nós atravessamos.

   Esse é um dos livros importantes, necessário à formação de um bom leitor, mas, principalmente, como qualquer boa literatura, ela vai treinando o leitor para enxergar o mundo com clareza, como os óculos de Miguilim, sem deixar que os outros lhe determinem o que ser ou o que fazer.

Vídeo-resenha:

FICHA TÉCNICA

 

Título Original – Campo Geral (em Manuelzão e Miguilim)

Edição Original – 1956

Edição utilizada nessa resenha: 1972

Editora José Olympio – Rio de Janeiro

Páginas: 103

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