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CAPITÃES DA AREIA

          O escritor baiano Jorge Amado tem uma obra extensa, com cerca de 40 livros e é possível dividir seus romances em duas fases. Jorge Amado tem uma primeira fase de crítica social quando ele militava no Partido Comunista e que dura da década de 30 a meados da década de 50, mas tem também uma segunda fase, quando ele, decepcionado, abandona o comunismo e começa a escrever suas obras mais de crônica de costumes. Enquanto Dona Flor e Seus Dois Maridos, que tem resenha aqui no site, é da fase mais leve, de crônica de costumes, Capitães da Areia é seu principal romance da primeira fase, de crítica social, tendo sido publicado em 1937.

         E do que se trata a história?

      Como quase todos os seus livros, a história se passa na Bahia, em Salvador e vai falar de uma gangue de meninos de rua que roubam para sobreviver.  O livro começa de uma forma muito diferente com notícias de jornal sobre a gangue que se chamava, claro, Capitães da Areia. A partir da matéria original, outras matérias são publicadas com a opinião do chefe de polícia, do juiz de menores, de uma costureira que fala mal do reformatório para onde essas crianças são enviadas, do diretor do reformatório e até de um padre que é arrolado na história.

         O mais interessante é que cada um desses personagens se exime de culpa. Como se eles não tivessem qualquer responsabilidade por haver meninos que têm de roubar para sobreviver e que, quando são pegos, são enviados ao reformatório, o que em nada melhora a vida deles, em muitos casos até piora, pois, no reformatório, chegam a ser torturados.

          Apesar do grupo Capitães da Areia ser grande, cerca de cem meninos de todas as idades, dos 9 aos 16 anos, e "de todas as cores", como diz o autor, a história vai focar no líder, chamado Pedro Bala, e seus companheiros mais próximos. Pedro Bala é um chefe respeitado e justo. É filho de um estivador do porto que foi assassinado por liderar uma greve por melhores condições de trabalho. Loiro, tem uma cicatriz no rosto que ele ganhou em uma disputa com o antigo chefe dos Capitães da Areia.

          Há o negro João Grande, o mais alto e forte do grupo, que não é muito inteligente, mas é uma pessoa boa. Ele dorme na porta do trapiche com o punhal próximo à sua mão para evitar qualquer surpresa e proteger o grupo.

         Há o Professor que recebeu esse apelido porque sabe ler, mas que, na verdade, chama-se João José, uma brincadeira do autor que reúne os dois nomes mais comuns do Brasil. Apesar de só ter cursado um ano e meio de escola, de tanto ler, ele lia correntemente e estava sempre contando as histórias dos livros para os companheiros. Era ele também que pensava os melhores planos de roubo.

          Outro garoto era o Sem-Pernas que era coxo e porque tinha esse problema físico costumava ganhar a confiança das pessoas que nunca imaginavam que ele fosse um ladrão e, por isso mesmo, se tornou o espião do grupo.

           O Gato, o mais vaidoso, de brilhantina no cabelo, sempre atrás de roupas melhores e anéis com que pudesse se enfeitar. Já o Volta-Seca, um mulato sertanejo, que se dizia afilhado de Lampião e que sonha em entrar para o bando de seu padrinho. E, por fim, o Pirulito que era o religioso do grupo. Seu canto no trapiche tinha quadros de santos para os quais rezava diariamente.

     Com esse pequeno grupo, o autor já consegue mostrar várias personalidades diferentes e que retratam o todo. Claro que eles são malandros, são espertos, são até ousados e é isso que os tornam personagens cativantes. Sempre vestidos de farrapos, eles moram em um trapiche abandonado com muitos buracos no teto. Trapiche, para quem não sabe, é um tipo de um armazém que fica perto do mar e que serve para estocar mercadorias que chegam ou que partem por via marítima.

          É lógico que a história vai focar em um determinado momento do grupo em que fatos importantes ocorrem, como, por exemplo, pela primeira vez, uma menina chamada Dora é aceita no grupo. E isso transforma um pouco todo o grupo que tem na menina, a figura de uma mãe, uma irmã, e recebem um carinho e afeto que eles nem sabiam que lhes fazia tanta falta.

          Jorge Amado consegue fazer de uma realidade muito triste de pobreza e abandono, um livro que em alguns trechos chega a ser poético de tão sensível. Há um trecho que eu gosto muito que é uma vez em que os meninos têm acesso a um parque e andam de carrossel. Um carrossel velho, pobre, mas que com suas luzes e sua música encantam todo o grupo. Nesse momento, o escritor nos lembra que, apesar de todos os dias os Capitães da Areia terem de lutar pela sobrevivência, ainda são crianças. Uma infância que lhes foi roubada.

         Mais uma vez eu lhe peço que não olhe certas passagens do livro com as lentes de agora, do século XXI. Há, por exemplo, cenas em que os meninos estão acostumados a derrubar meninas no areal para ter relações com elas, ou então, cenas em que a homoafetividade é completamente repudiada. Não se esqueça: estamos lendo uma obra dos anos 30 e, por mais progressista que fosse um autor, o romance retrata os costumes de um determinado contexto. Se fôssemos deixar de ler todos os livros que trazem o que hoje consideramos incorreto, de Shakespeare a Sartre, não escaparia ninguém.

        Outra coisa que chama a atenção é como mais uma vez, Jorge Amado, que defendia o sincretismo religioso e que é o autor da lei de liberdade de culto, consegue mostrar duas figuras religiosas completamente diferentes entre si, mas que se unem e dão amparo aos meninos. O padre José Pedro, um padre humilde que sofre a pressão da arquidiocese para abandonar o cuidado com os Capitães da Areia, e a mãe-de-santo Don”Aninha. São somente esses dois adultos que ajudam o grupo.

          Uma curiosidade triste é que, em 1937, o Brasil vivia a ditadura Vargas e a polícia do Estado Novo queimou inúmeros exemplares desse livro porque, como eu sempre digo, ditadura, seja de direita ou de esquerda, sempre tem medo de livros e de pessoas que pensam. E usa a força e a ignorância para tentar controlar qualquer voz dissonante que não concorde com eles, ou mostre que o governo ditatorial tem muitos problemas. Eles diziam que o livro Capitães da Areia era comunista. 

        Entretanto, o que Jorge Amado estava fazendo era retratando uma realidade que até hoje ainda é atual e talvez até pior, seja na diferença social que leva à greve como a dos estivadores, seja, principalmente, com tantas crianças desnutridas, morando nas ruas da maioria das capitais brasileiras. Por tudo isso, é um romance realista e de crítica social. Além de, provavelmente, ter sido o primeiro romance em que um menino delinquente como Pedro Bala é o protagonista, o personagem principal. É como se os leitores daquela época tivessem tendo pela primeira vez a oportunidade de conhecer o outro lado da história, o outro lado da sociedade.

         

Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=PLLO6pdTnCM&t=932s

FICHA TÉCNICA

Título Original – Capitães da Areia

Edição Original – 1937

Edição utilizada nessa resenha: 2022

Editora - Companhia das Letras/Companhia de Bolso

Páginas: 275

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