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MEIA-NOITE

           O relógio bateu meia-noite. Mais um dia iria começar no escuro da noite.

          Ele se remexeu na poltrona. Deveria ir para a cama. Sua coluna já estava reclamando de ficar tanto tempo sentado. Mas como ir dormir, sem saber dela?

          Ela havia prometido telefonar. Ele aguardava há horas. Promessas são sempre peças frágeis que se quebram sem ao menos cair no chão. Ele sabia disso. Sua pele sabia disso.

          Também sabia que deveria tê-la acompanhado, mas não tinha mais saúde pra tal. Ela brilhava tanto por onde passava que, muitas vezes, ele tinha receio de ficar cego, mas só ficava invisível, atrás da cortina, na coxia, na sala ao lado, na poltrona do fundo, no hall de algum lugar.

         Como havia guarda-casaco, guarda-bolsas, guarda-volumes, deveria existir guarda-maridos. Um lugar quieto onde ele pudesse ler um livro, enquanto aguardava e, ao final, ela passaria por ali, daria um cartão para a recepcionista do guarda-volumes, que lhe devolveria a sua dona.

          Estava velho. Não reclamava. Só queria saber dela.

       Já havia entendido há muito tempo que há dois tipos de pessoas. Aquelas que precisam de holofote para que brilhem ainda mais e aquelas que fogem do holofote. Sabia disso quando se casou com ela, há mais anos do que conseguia agora se lembrar. Talvez tenha sido exatamente por isso que se apaixonou. No fundo, ele a admirava. Admirava todo o som vibrante que ela emitia, da mesma forma que sabia o quanto ela amava o seu silêncio.

          Olhou o telefone. Nenhuma mensagem. Ligou a tevê para espantar o sono e a ansiedade.

         O jornal da meia-noite estava começando. E então ele soube, e então ele viu e então ele não queria viver mais nada. O acidente havia sido fatal, garantiu o jovem repórter que não a conhecia. Repetia com voz emocionada que a grande estrela havia morrido no local e ele nem a conhecia.  Ela sequer tivera chance de chegar ao hospital. O Brasil e o mundo se rendiam em luto. Eles não a conheciam.

          Desligou a tevê. Desta vez, estava realmente cego. A luz havia apagado.

 

SP 05/03/24

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