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MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS

          Muitas pessoas me perguntam o que eu penso sobre o livro Memórias de Um Sargento de Milícias e sempre querem saber por que ele é um livro que todo estudante tem de ler.  Então vamos lá. Tem livros que gostamos porque a história é genial. Normalmente, são histórias originais, bem construídas, sem buracos ou barrigas, histórias que tem bons finais, uma trama bem amarrada. Aquele tipo de livro que quando a gente acaba de ler e fecha o livro, só conseguimos pensar: que história fantástica! Bem, Memórias de um Sargento de Milícias, escrito por Manuel Antônio de Almeida, não é um desses livros.

         E aí entramos em outra classe de livros, aqueles que a história não é tão excepcional, mas a narrativa é ou então a narrativa era extremamente original para a época em que o livro foi publicado, muitas vezes uma narrativa que quebrou paradigmas, que simplesmente alterou o modo como escritores vão escrever dali pra frente e leitores vão se acostumar a ler. Pois bem, é nessa classe de livros que Memórias de um Sargento de Milícias se encaixa.

          Vamos entender o porquê.

.        A história começa com dois portugueses, o Leonardo e a Maria, vindo para o Brasil em um navio. Leonardo achou Maria uma mulher bonita e para se aproximar dela, estando ela encostada à borda do navio, Leonardo passa e lhe pisa no pé. Surpreendentemente, Maria então lhe dá um beliscão. Depois dessa troca de carinhos tão estranha, os dois se tornam amantes e quando chegam ao Brasil, Maria já está grávida. Depois de alguns meses, dá à luz a um menino que também se chamará Leonardo, como o pai. E logo no primeiro capítulo, o nenê é batizado em uma festa animada. Sua madrinha será a parteira, que fez o parto de Maria, e o padrinho, será o barbeiro.

          O Leonardo pai tinha por profissão ser meirinho. O que era um meirinho? Meirinho era um oficial da justiça. O funcionário que fazia a citação das partes em um processo da justiça. O autor conta que na época em que se passa a história, os meirinhos se vestiam com rigor e eram muito respeitados, mas que no presente não são mais. Dessa forma, nós leitores já somos avisados que a história se passa há bastante tempo, no início do século XIX. E conta também que Leonardo era um meirinho de cabelos brancos, cara avermelhada, gordíssimo, e que com a idade havia se tornado um moleirão, que sempre atrasava o trabalho e não saía da esquina dos meirinhos.

          Os colegas o apelidaram de Leonardo Pataca porque ele vivia reclamando que recebia pouco por cada citação que fazia. Lembrando que Pataca era uma antiga moeda de prata que valia 320 reis, exatamente o mesmo valor que cada meirinho recebia quando fazia a citação de alguém para comparecer à justiça.

          Quando o Leonardo filho tinha sete anos, já era uma criança endiabrada, gulosa e sua mãe vivia lhe batendo. Foi também nessa época que seu pai, o Leonardo Pataca, começou a desconfiar que a Maria, sua esposa, o traía. E o pior: não era apenas com um, mas com vários homens, o que resultou em uma grande briga, em que Maria apanhou bastante do marido. A criança assistiu a tudo e talvez com medo daquela situação,  começou a rasgar as folhas dos autos que seu pai havia trazido pra casa. Quando Leonardo Pataca viu aquilo direcionou sua raiva para o menino que levou um grande pontapé. Na rua, a criança foi parar no salão do barbeiro, seu padrinho, e que também era vizinho. 

        O barbeiro foi à casa de Leonardo Pataca para apaziguar o casal. Leonardo Pataca acabou saindo de casa e Maria obteve a promessa do barbeiro que, se caso algo acontecesse, tomaria conta do menino. Assim, quando Leonardo Pataca voltou, pronto a perdoar a esposa, Maria havia fugido com o capitão de um navio que partira na véspera para Portugal. Leonardo Pataca então abandona o filho com o barbeiro e também se vai.

          O garoto vai crescer cada vez mais travesso, mas o padrinho que era sozinho e não tinha filhos, acabou gostando tanto dele que tudo lhe desculpava e, ao invés de educá-lo, o mimava, o que o tornava ainda mais endiabrado. O padrinho tenta de tudo para ver se arruma um bom futuro para o afilhado, faz planos de que ele possa a vir se tornar um padre, o que não dá certo, como todos os seus outros projetos. Ao longo da história, vamos percebendo que Leonardo parece não ter jeito, que ele gosta mesmo é de vadiar.

          Na época em que Leonardo já era um rapaz, o barbeiro começa a frequentar a casa de uma velha amiga, D. Maria, mulher de algumas posses e que tem uma sobrinha, chamada Luizinha. Leonardo primeiro acha a moça muito feia, mas, aos poucos, vai se interessando por ela, mas, inexperiente, não sabe como agir e Luizinha também parece meio apática, sem muito interesse por Leonardo ou por qualquer coisa.                        

          Nessa mesma época, começa a frequentar a casa de D. Maria um antigo conhecido da tia, um tal de José Manuel, um tipo que não inspirava muita confiança, e que estava interessado na herança da sobrinha de Dona Maria. A parteira, madrinha de Leonardo, e que também era amiga de D. Maria faz de tudo para afastar José Manuel, inventa até mentiras sobre o caráter de José Manuel, de modo que o caminho ficasse livre para Leonardo, mas acaba não dando certo.

          Nesse meio tempo, o barbeiro morre e deixa uma boa herança para o afilhado que, ficando sozinho, vai morar com o pai e sua nova mulher, Chiquinha, que, por sua vez, era filha da madrinha de Leonardo. Chiquinha, a filha da parteira que virou sua madrasta, e Leonardo, os dois não se suportam e vivem brigando. Tanto Leonardo Pataca, o pai, como a madrinha, às vezes tomam partido de um ou de outro, o que acaba gerando ainda mais brigas.

          Em uma dessas brigas, Leonardo sai de casa, encontra um antigo colega de traquinagens e acaba morando na casa de sua família e se apaixonando pela prima do amigo, a Vidinha, que tocava violão, cantava e era muito mais experiente do que a sobrinha de D. Maria, o que deixa Leonardo encantado.

          Enquanto isso, Luizinha se casa com José Manuel e se muda da casa da tia. A moça é praticamente trancada em casa pelo marido, é muito infeliz e tem saudade de um outro tempo em que morava com a tia e recebia a atenção de Leonardo, o que a leva a compreender que deveria ter se casado com ele e não com José Manuel.

         Um personagem importante na história é o Major Vidigal, que tem fama de implacável e que é responsável pela lei e pela ordem na cidade do Rio de Janeiro, onde se passa a trama. Naquele tempo, a vadiagem era considerada crime, e os malandros presos. Por isso Leonardo, que nunca quis saber de trabalhar, acaba sendo perseguido pelo Major Vidigal, até que é pego e Vidigal o transforma em soldado.

          Como soldado, um dia Vidigal lhe ordena que vá a uma festa em casa de seu pai, o Leonardo Pataca, para avisar quando o Teotônio, um homem muito engraçado, um comediante imitador, iria sair da festa para que Vidigal o pudesse prender por vadiagem. Mas Leonardo não trai o pai e acaba facilitando a fuga de Teotônio. Vidigal descobre e prende Leonardo. Quando tudo parece perdido, a madrinha e D. Maria apelam para uma antiga amante do Major Vidigal, chamada Maria-Regalada, assim Leonardo é solto e se transforma em sargento.

        Mais tarde, Joaquim Manuel, o marido de Luizinha morre, e ela e Leonardo começam a namorar, mas como sargento da guarda não podia se casar, ele é transferido para as milícias e se torna sargento de milícia e então se casa.

           Essa é a história. E ela tem sim um final muito estranho porque Leonardo estava preso e, ao invés de ser apenas solto, ele é solto e promovido a sargento. Por que ele foi promovido? Ninguém sabe. Acho que nesse ponto o autor, Manuel de Almeida, não conseguiu escrever uma história verosímil. E é uma pena porque com um pequeno trecho ele poderia ter feito o personagem ser solto, depois ter realizado alguma proeza e por isso ser promovido a sargento, mas não foi assim que o livro foi escrito. A impressão que temos é que houve uma pressa em terminar a história e tudo dar certo. Aliás, vemos isso em muitos livros.

         Mas, como já foi dito antes, o valor do livro está na narrativa que é construída por capítulos curtos para serem publicados em jornal, em 1852 e 1853. E a grande mudança é que pela primeira vez um romance usava um vocabulário popular, encontrado nas ruas, muito diferente da linguagem das histórias típicas do romantismo.

       Memórias de um Sargento de Milícias é uma crônica da sociedade fluminense daquela época. Explora os costumes, como a fofoca, as brigas domésticas, as traições, a vadiagem e a sua repressão, enfim é um romance da vida real, mesmo que no final o autor tenha se perdido um pouco. Inclusive, a figura do malandro, tão comum em nossa cultura, começa a aparecer nesse livro.

          Um recurso interessante é que o autor também faz observações sobre o que relata. Por exemplo, quando Luizinha vive mal com o marido que a maltrata, ele dizia que a vida de Luizinha depois de casada, representava com fidelidade a vida do maior número de moças que então casava, ou seja, ele está nos contando que a maioria das moças daquela época era infelizes ou maltratadas pelo marido. Ou ainda quando ele descreve as brigas de família, dizendo que todos falam a um só tempo e se esforçam para falar mais alto do que os outros, ninguém aceita desculpas e todos se julgam ofendidos. Recorrem-se as ofensas passadas, presentes e futuras e que depois de horas, cansados, todos abandonam o campo de batalha, ficando ainda mais encarniçados uns com os outros, de como estavam no principio. Uma descrição perfeita de uma grande briga de família.

        Além disso, a narrativa é construída fazendo a rememoração do que aconteceu antes, ou no capítulo anterior, e termina muitas vezes os capítulos criando suspense para o que acontecerá depois, exatamente como fazem as novelas ou as séries de TV. Mas, é preciso lembrar que o romance foi escrito em 1852. Hoje parece banal, mas na época em que foi publicado, era uma grande inovação. E por essa razão, é preciso ler Memórias de um Sargento de Milícias com essa perspectiva, entendendo sua importância para a história da literatura brasileira, como um romance disruptivo, ou seja, completamente novo para os padrões da época.

        Uma curiosidade é que os capítulos eram publicados anonimamente e mesmo quando saiu em volume, a autoria foi assinada apenas como um brasileiro. Somente na terceira edição, quando Manuel Antônio de Almeida já havia falecido com apenas 31 anos, no naufrágio do navio Hermes, é que seu nome aparece como autor, nesse que é seu único romance.

Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=L0N7LDW79L4

FICHA TÉCNICA

Título Original – Memórias de um Sargento de Milícias

Edição Original – 1853

Edição utilizada nessa resenha: 1963

Editora: W. M. Jackson - Porto Alegre

Páginas: 236

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