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MEU VELÓRIO

        Tenho um projeto de viver mais de cem anos, mas claro que preciso combinar isso com a vida e toda vez que eu tento selar um acordo, ela desconversa. Apesar das muitas décadas que ainda faltam, já quero deixar tudo planejado.

          Como todo mundo, não gosto de ir a velórios, mas tenho uma certa simpatia pela ideia de velar um morto. Acho respeitoso, como um último ato de consideração e afeto para com aquele que deixa esse mundo. Mas descobri que não foi com essa intenção que os velórios surgiram.

       Reza a lenda que na Idade Média, quando as pessoas tomavam bebida alcoólica em copos feitos de estanho, acontecia uma reação química e a pessoa caía como se estivesse morta. Como ninguém tinha certeza dessa morte e para não enterrar alguém vivo, os familiares ficavam ao lado do corpo por pelo menos 24 horas e usavam, já que não havia eletricidade, velas para olhar o cadáver. Daí a expressão velar o corpo e, claro, velório.

       Acho que no Brasil estamos certos em não oferecer comida. Basta um café preto. Ninguém espera mais do que isso. Toda vez que vejo um velório em filme americano, aquilo não me lembra em nada um ato de respeito. É uma comilança, como se todos estivessem em uma festa.

          Entretanto, por outro lado, também gosto da ideia dos mexicanos de não focarem na morte, mas celebrar a vida de quem morreu. Além de comemorar o fato de que o falecido vai se reencontrar com seus antepassados. Por isso que o dia de finados, ou o Dia de Los Muertos, é celebrado com tanta alegria.

         Dessa forma, no meu velório, vou tentar unir as duas coisas. Pra começar, nada do pretinho básico. Gostaria que as pessoas fossem vestidas de branco como se fosse réveillon, já que vou começar outro ano em outro lugar, né?  Mas não quero ninguém fofocando ou dando risada, afinal, o ano novo é só pra mim. Quero silêncio e muitas flores.

          Um choro sentido ou pelo menos umas poucas lágrimas também pega bem e podem caprichar nesse quesito. Velório que ninguém chora, parece que o morto não fará falta.

          Na hora de baixar o caixão, peço que todos cantem juntos a música O que é, o que é de Gonzaguinha e se não souberem a letra não se preocupem, já vou deixar providenciado um karaokê.

       Mais um pedido: por favor, não dividam meus bens durante o velório. Todo mundo sai falando mal e aquele primo pobre ainda pode escutar. Por fim, quero lembrar aos meus inimigos que sempre quis ser fantasma, por isso, fiquem de olho bem aberto.

          Acho que é só! Posso partir! Adeus!

SP 07/11/2023

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