Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
MIL CAIXAS
Sou obcecada por caixas, de todos os tipos, de todos os tamanhos. O que há dentro das minhas muitas caixas?
Nada.
Então pra que servem? Pra tudo e pra nada. Gosto da possibilidade que uma caixa oferece, afinal, dentro de uma caixa cabe tanta coisa. Caixa pequena, coisa pequena, caixa grande, coisa grande ou, surpreendentemente, mínima. E mesmo podendo guardar o mundo, fica vazia.
Uma visita, depois de muito olhar, escolhe uma colorida, pequena, redonda, de papier mâché, pra satisfazer sua curiosidade. E abre e não vê o que eu vejo.
Outra cutuca a marronzinha de cerâmica, vinda lá do Xingu. Brinca na mão como se tivesse receio de abrir. E não abre e não vê o que eu vejo.
Outra ainda escolhe a maior, preta e vermelha com um símbolo estranho na tampa. Abre e não se conforma com o vazio. Passa o dedo pela superfície interna, buscando com o tato o que os olhos não encontraram. E não vê o que eu vejo.
Além das belas que ganham o direito de habitar as salas e os quartos ainda guardo caixas de papelão usadas. Sem qualquer beleza. Podem ser úteis, penso, sem jamais utilizá-las.
Caixas vazias, folhas brancas, telas virgens. Expectativas. Caminhos sem tráfego, sem história. Por isso viajo, viajo de verdade e de mentira, o tempo todo. Vazios precisam ser preenchidos de histórias. Não importa se são bonitas ou feias, batidas ou originais, esperadas ou surpreendentes. Nada existe sem história.
Muitas caixas roubam o meu olhar. Em minha mesa de trabalho também há uma caixa, com uma foto de uma caneta antiga em cima de uma carta escrita para alguém. Não conheço quem escreveu a carta ou quem a recebeu. Não conheço quem fez a caixa. Talvez uma das únicas que têm conteúdo. Todos os dias a abro e retiro dela um pequeno papel em branco e escrevo algo e depois jogo no lixo. Até a próxima história ou até o papel acabar e só restar a caixa.
Essa não é qualquer caixa. Talvez um dia, quando o tempo fizer o seu serviço, eu jogue essa caixa fora. Caixa cheia de papeis em branco é um pleonasmo que minha alma tão irritadiça não consegue suportar.
São Paulo, 21/07/2020