Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
NÓS MATAMOS
O CÃO TINHOSO
Primeiro é preciso compreender a importância de um livro de literatura moçambicana, como Nós Matamos o Cão Tinhoso, para nós, brasileiros. Nossa literatura é influenciada por outras literaturas. As ocidentais, principalmente a francesa, inglesa e, claro, a portuguesa, já que fomos colonizados por portugueses, mas também a africana, pois o Brasil foi o país que recebeu o maior número de escravos africanos de todo o mundo. A influência africana não está apenas na literatura, mas em muitos aspectos da vida brasileira como religião, culinária, música, cultura no geral e na maneira de ser e de agir do africano.
O segundo passo é entender o contexto. Nenhum livro é escrito sem que seu autor esteja inserido em um determinado contexto que o influencia e também a sua obra. Nós Matamos o Cão Tinhoso foi escrito e publicado em 1964. E o que estava acontecendo em Moçambique naquela época? Apesar de 1964 ser em pleno século XX, o país continuava a ser uma colônia de Portugal e os portugueses, como quaisquer colonizadores, oprimiam os povos originais. E aí já há um ponto em comum com o Brasil que também teve colonização portuguesa.
À época, o autor Luis Bernardo Honwana tinha então apenas 22 anos e fazia parte da Frente de Libertação de Moçambique, a FRELIMO. Como em qualquer regime totalitário, que não admite que se pense ao contrário, Honwana foi preso por 3 anos por participar de manifestações contra a colonização portuguesa. É nesse período que ele escreve esse livro que vai ser seu único livro de ficção durante toda a vida.
O livro tem 7 contos. O primeiro que é o mais extenso e o mais importante é justamente Nós Matamos o Cão Tinhoso, que dá título ao livro. O narrador do conto é um menino chamado Ginho e vai ser pelo seu olhar que nós, leitores, vamos conhecer a história. E isso é importante porque é um olhar infantil, às vezes, até ingênuo. E Ginho, era um menino mais sensível, observador, que não jogava bem futebol e que, por isso, muitas vezes era gozado pelos seus amigos da Malta. O que é Malta? É a expressão portuguesa para turma.
Ginho nos conta que havia um cão na escola e ele vai falar e repetir que esse cão tinhoso tinha olhos azuis e essa é uma referência importante. Porque olhos azuis não era uma característica do povo original de Moçambique, mas do colonizador europeu. Ginho dizia que os olhos eram grandes e metiam medo. E ainda vai completar dizendo que “o cão tinhoso tinha a pele velha, cheia de pelos brancos, cicatrizes e muitas feridas. Ninguém gostava dele porque era um cão feio.” O autor repete essa descrição mais de uma vez, que é um recurso literário para chamar a atenção do leitor. Mostrar que essa descrição tem importância. E mais uma vez, essa descrição corresponde ao colonizador português.
E o que significa tinhoso? Tinhoso é alguém que provoca repugnância, mas também que é teimoso, insistente.
Ginho nos conta que ninguém gostava do cão tinhoso, ninguém gostava de lhe fazer carinho por causa das feridas, com exceção de uma menina chamada Isaura. Mas a Isaura não era uma criança comum. Ela não era inteligente, a professora dizia que ela “não tinha tudo lá dentro da cabeça”. E isso também é simbólico. Como se só alguém com algum tipo de retardo ou deficiência pudesse gostar do cão tinhoso. Ou, se apenas um moçambicano que não pensasse direito poderia gostar do português.
Um dia, o administrador manda que o veterinário mate o cão tinhoso. E o veterinário encarrega um empregado, o Sr. Duarte, de fazê-lo que, por sua vez, encarrega os meninos da Malta de matar o cão. Como se ninguém quisesse puxar para si esse trabalho. Então quem tem de agir são os meninos que vão correndo para suas casas e pegam uma arma. Isso nos surpreende. Primeiro pela naturalidade com que se tem armas em casa e depois por serem crianças a portar uma arma para atirar no cachorro.
Mais uma vez há toda uma simbologia por trás disso. São os mais jovens que têm de ter coragem de pegar em armas. Há até uma discussão se não se poderia matar o cão com remédios, mas o autor quer nos mostrar que em uma revolução para expulsar o colonizador é preciso pegar em armas. E cabe ao Ginho, o mais sensível do grupo, o que talvez tivesse menos coragem, dar o primeiro tiro. Ginho titubeia, ele tem medo, mas Quim, o líder da Malta, está o tempo todo o desafiando e, para não parecer covarde, Ginho fecha os olhos e atira.
É quando se ouve o grito de Isaura que tinha seguido os meninos. Ela tenta impedir que eles continuem atirando, protege o cão com seu corpo, mas os meninos a afastam. E todos os outros garotos atiram até estraçalharem o cão tinhoso.
Ainda há uma cena no final em que Ginho e Quim conversam sobre terem alguma culpa por ter matado o cão, mas repetem que ninguém queria brincar com o cão tinhoso e que eles só cumpriram as ordens do Sr. Duarte. E vão para a sala de aula sem dar mais importância ao fato, como mostrando que os meninos fizeram o que tinha de ser feito.
Então nesse conto de menos de 50 páginas há toda uma narrativa camuflada, evidentemente por causa de censura portuguesa, de uma história por independência de Moçambique que havia sido anexada ao Império Português em 1505. Foram séculos de dominação. A Frente de Libertação de Moçambique, da qual o autor participava, só começou com ações de guerrilha contra o governo português em 1964, que é o mesmo ano de publicação do livro.
Poucos países tiveram uma independência tranquila como a do Brasil. Nossa história é muito diferente com o herdeiro do trono português declarando ele mesmo a independência. A grande maioria dos países teve de pegar em armas para expulsar o colonizador. Exatamente como acontece no conto. Por mais medo, por mais dúvidas que o povo pudesse ter e, mesmo que houvesse entre o povo alguns "Ginhos" mais sensíveis, ou "Isauras" que não pensassem direito, ainda assim era preciso lutar pela independência e, na maioria das vezes, a única saída é pegar em armar e matar o colonizador, ou o cão tinhoso.
Já o segundo conto chamado Inventário de Imóveis e Jacentes é um conto curto de apenas cinco páginas e muito diferente porque é a descrição de uma casa de família. A narrativa é feita por um filho que a gente imagina que seja uma criança, mas isso não fica claro. O conto começa durante à noite com todos dormindo, menos o narrador. Está calor, o pai ou o papá, como ele o chama, não gosta de dormir com a porta ou a janela aberta, então o quarto onde dormem cinco pessoas está abafado. No outro quarto dorme a mãe com as irmãs.
O narrador vai descrevendo a casa, e obviamente é uma casa pobre, o que percebemos pela falta de espaço, pelos colchões de palha, pela escassez dos móveis e ele diz ainda que nem cabem todos na mesa de jantar. São muitas pessoas em uma casa pequena. O que surpreende é que, embaixo da cama do narrador, há livros, embaixo da cama de seu papá, há livros e no corredor há uma estante com cinco prateleiras todas cheias de livros. Em um determinado momento, como se não fosse muito importante porque ele estava falando de cortinas, ele deixa escapar que o pai havia sido preso anteriormente. Por quê? Não sabemos. Mas podemos fazer uma ligação entre os livros e a prisão e imaginar que ali, talvez, haja um rebelde que foi abafado.
Ele termina falando das revistas que a mãe coloca na sala de visita e que o pai acha que são uma porcaria. E completa: “É por isso que não tenho assim tanta vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum”. Há então um desânimo anunciado, como se não valesse a pena em meio àquela pobreza, fazer qualquer movimento ou mesmo viver. Perceba que móveis e imóveis são coisas imóveis, da mesma maneira que o povo moçambicano e o narrador também ficam imóveis, aceitando a colonização portuguesa.
O terceiro conto chama-se Dina e passa-se em uma plantação ou machamba em que um idoso, ou Madala na língua local, trabalha. O conto começa com o idoso com muita dor nos rins, com o dorso nu em um calor imenso. Ele não está aguentando mais ficar curvado daquela maneira sobre o milho, catando, mas não ousa endireitar as costas com medo do capataz. Apesar de já ter soado o dina, ou o horário do almoço, o capataz ainda não havia mandado que eles parassem de trabalhar. E o Madala, apesar da dor lacinante não ousava parar por conta própria.
Nesses momentos de agonia, Madala percebe o quanto já está velho para trabalhar na machamba. Quando, por fim, o capataz dá a ordem para eles irem almoçar, alguém o avisa que sua filha Maria está ali. Ele estranha e a filha diz que tinha ido apenas vê-lo. Os homens olham para Maria percorrendo suas formas sob o tecido que lhe cobre o corpo chamado capulano. Seu pai sabe que Djimo que trabalha com ele gosta de Maria, mas como ela dorme com muitos homens, ninguém quer casar com ela.
Maria insiste para o pai ir comer, enquanto ela fica perto do celeiro esperando por ele. Madala, de longe, vê o capataz se aproximar da filha e os dois se afastarem juntos. Djimo pergunta a Madala se queria que ele fizesse alguma coisa, mas Madala não responde. Logo depois eles veem o capataz indo para a Machamba sendo seguido por Maria.
Na machamba, o capataz tem relações com Maria, Os homens do acampamento se reúnem em torno de Madala como se esperassem uma ordem dele para reagir, mas Madala não faz nada. Engole em seco, enquanto aperta com raiva surda, uma planta imaginária em suas mãos.
Quando o capataz e Maria voltam, ela conta que Madala era seu pai. O capataz fica todo atrapalhado diz que não sabia, quer dar algum dinheiro a Madala, mas diante do imobilismo do outro diz que o dina já acabou e que devem voltar ao trabalho. Ninguém se mexe. Parece, por um instante, que finalmente os trabalhadores vão ter coragem e vão reagir contra o homem branco que os oprime. O capataz oferece vinho a Madala. Ele olha pra garrafa, a pega e bebe toda. Há um silêncio de derrota e todos voltam ao trabalho.
Esse conto, diferente dos dois primeiros, é narrado em terceira pessoa e mostra esse narrador onisciente que está vendo tudo ao mesmo tempo. A relação sexual e a vergonha e humilhação de Madala. Vê a submissão do povo moçambicano ao capataz branco que tem o poder e o dinheiro. Que não luta nem pela sua honra. É um povo cansado.
Vamos ao quarto conto: A velhota. Ele começa com um jovem sendo espancado. Algo aconteceu no bar e ele está bêbado. Não dá pra se ter certeza, mas ele diz que ele era um elemento estranho, ridículo, exótico e sei lá que mais. Então, imagina-se, por ser exótico, aos olhos do português, que ele seja original de Moçambique. Depois ele diz que ele não conseguiu bater no tipo porque “ele era todos os outros e exatamente como isso é que ele me bateu.” Ou seja, ele não apanhou de um único indivíduo, mas simbolicamente ele apanhou de todos os dominadores que justamente por serem dominadores se achavam no direito de bater.
Ele pensa que deve ir para casa ver a velhota e os miúdos, ou a sua mãe e os irmãos pequenos que ele dizia serem barulhentos. Há um trecho em que diz: “E precisava ir para casa para encher os ouvidos de berros, os olhos de miséria e a consciência de arroz com caril de amendoim”. De novo, há uma clara alusão há desesperança daquela vida.
Quando ele chega em casa, a velhota, sua mãe, está servindo as crianças que brigam por um pedaço de carne. Ela pergunta se ele também vai comer, insiste e ele se exaspera querendo saber porque a mãe quer tanto saber se ele vai comer e ela diz, meio envergonhada, que só havia sobrado ucoco, que era o arroz que fica queimado no fundo da panela. E aí ele pergunta então o que a mãe vai comer e ela diz que não tem fome. E ele percebe assim que não há mais qualquer comida na casa.
Ele fica emocionado e abraça a mãe. Ela estranha porque ele não costuma fazer isso e pergunta se eles bateram nele. Ao que ele responde que eles destruíram tudo, eles roubaram, o que mais uma vez é uma menção ao colonizador português. A mãe quer que ele conte o que aconteceu, os irmãos insistem para que ele conte. Mas ele pensa que não seria ele a destruir nos miúdos o que quer que fosse e que, a seu tempo, alguém se encarregaria de os pôr em raiva. Quando os irmãos vão dormir, ele conta que apanhou e de como os seus algozes o fazem sentir pequenino. Eles ficam abraçados e a velhota só consegue dizer: meu filho!
O quinto conto chama-se: Papá, cobra e eu. E de novo o narrador em primeira pessoa é uma criança, o Ginho do primeiro conto. Ele mora com a família em uma pequena propriedade. Entra uma cobra na capoeira, que é uma espécie de galinheiro, e essa cobra está matando as galinhas. O pai fala pra mãe que vai arrumar alguém para matar a cobra, mas quando o pai e a mãe saem de casa, o garoto volta à capoeira para ver a cobra.
O irmão menor, chamado Nandito, que não sabe nada sobre a existência de uma cobra o segue. Quando fica sabendo que há uma cobra ali tem medo e quer ir embora, mas Ginho não quer acompanhá-lo e ele tem medo de ir sozinho. Estão os dois bem quietos no galinheiro quando entra o Totó, o cachorro da família, e o Lobo, o cachorro do vizinho português chamado Sr. Castro. Percebam a simbologia dos nomes. Totó é um nome completamente inofensivo, mas Lobo já é aquele que ataca.
A cobra dá um bote no Lobo e o morde. Nandito sai correndo e Ginho vai chamar um rapaz que trabalha na propriedade e os dois matam a cobra. Logo em seguida, os pais chegam e para o carro do Sr. Castro reclamando que o seu cachorro perdigueiro tinha aparecido morto e ele queria uma indenização.
O pai de Ginho não tinha dinheiro, balbucia qualquer coisa, mas o português não quer nem saber. Na hora do jantar, o pai reza, algo que ele faz sempre que tem raiva. E quando Ginho pergunta se ele acredita em Deus, ele responde que tem de haver uma esperança. A qual a esperança ele está se referindo? Obviamente a de deixarem de ser dominados pelos portugueses.
O sexto conto As Mãos dos Pretos é bem curtinho. É um menino querendo saber porque a palma das mãos dos pretos são brancas. Cada um com quem ele conversa lhe dá uma explicação diferente. Uma mais esquisita e sem sentido do que a outra.
Entretanto, quando ele pergunta para a mãe, ela diz que Deus fez pretos porque tinha de os haver, mas que ele se arrependeu de os ter feito porque os outros homens riam deles e os levavam para casa para trabalhar como escravos. Como não podia transformar a todos em brancos, fez com que somente as mãos se tornassem brancas, assim, tudo que qualquer um fizesse teria sido feito por mãos iguais. O que é uma clara alusão ao racismo e chama atenção de que brancos ou pretos são todos os iguais. O que determina uma pessoa não é sua cor, mas seus atos. O que suas mãos fazem.
Por fim, o sétimo e último conto chama-se Nhinguitimo, que é o vento que vem do sul. Conta a história do Vírgula Oito, um rapaz que, apesar de trabalhar na machamba do Rodrigues, dono da loja, tinha sua própria machamba, do outro lado do rio, em um local que ainda não tinha sido transformado em reserva indígena e pelo qual os portugueses não se interessavam muito.
O Vírgula Oito, de forma inocente, começou a contar a todos de sua lavoura e de como iria ganhar dinheiro com ela. E ainda previu que quando o nhinguitimo chegasse, as machambas grandes seriam destruídas pela fúria do vento, mas a dele e de seus vizinhos eram protegidas pelas árvores e não sofreriam.
O amigo tentou precavê-lo de que os portugueses poderiam não gostar de ele ganhar tanto dinheiro, mas o Vírgula Oito, ingênuo, achou que era só pagar os impostos que os portugueses não iriam se importar. O Rodrigues, dono do bar, alerta o administrador, dizendo que era um desperdício uma terra tão rica ficar com os pretos.
Mais tarde, Virgula Oito fica feliz com a colheita, faz planos de se casar com uma jovem chamada N’teasse, mas de repente todos esses sonhos são desfeitos. Os portugueses requerem a sua terra. Ele não se conforma e os enfrenta. Mata alguns, mas o que consegue fugir vai avisar Rodrigues, que chama mais homens para matar Virgula Oito. Ao ouvir isso, o narrador que está no bar, jogando baralho, se incomoda consigo próprio. Se pergunta como ele podia ficar matando rolas e jogando sete e meia enquanto tantas coisas aconteciam. Ele se levanta decidido e diz que aquilo tinha de mudar.
Então o livro acaba, mostrando claramente que não era mais possível aceitar passivamente toda a exploração do colonizador português, que era chegada a hora, e que aquela situação de opressão tinha de mudar.
Vamos àquilo que é fundamental: o livro todo tem um único tema que é a colonização portuguesa e a opressão do povo moçambicano. Cada conto vai explorar uma faceta dessa exploração. Seja através da pobreza, da prostituição das mulheres, da submissão dos homens, jovens ou idosos, do medo de enfrentar o poder, da necessidade de pegar em armas para combater o português, do racismo do português branco contra o africano negro, da falta de esperança ao lado da fé que acredita que algum dia o povo manso vai se rebelar e, por fim, a tomada de consciência que é preciso fazer algo para expulsar o português, sair do imobilismo.
Apesar disso tudo estar muito claro nas entrelinhas, há um cuidado do autor em não dizer explicitamente, o que não vai adiantar muito porque ele ficará preso de 1964 a 1967. E o livro se tornou um marco na literatura moçambicana.
A forma de narrar contribui para a apreensão da mensagem que o autor quer passar ao se utilizar de narradores em primeira pessoa, principalmente crianças e jovens. São justamente os mais jovens que, em qualquer lugar do mundo, têm coragem em se rebelar contra regimes autoritários. Os mais velhos, normalmente, têm medo ou estão acomodados demais. Outro ponto forte da narrativa é que, apesar do livro ter sido escrito em português, língua oficial de Moçambique, o autor usa termos de várias tribos diferentes, deixando claro que todas as tribos são Moçambique. A frase da revolução moçambicana que ficou famosa era: é preciso matar a tribo para nascer a nação, ou seja, pregando a unificação e a criação de uma identidade nacional.
Não é uma narrativa clara, explicita, mas recheada de metáforas e elipses. Por outro lado é um livro fácil, que não é longo e que entretém o leitor.
Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=qTWTnCToGQw
FICHA TÉCNICA
Título Original – Nós Matamos o Cão Tinhoso
Edição Original – 1964
Edição utilizada nessa resenha: 2017
Editora - Kapulana
Páginas: 148