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NIKETCHE -
Uma História de Poligamia

        Não podemos nos esquecer nunca de que a literatura brasileira é formada pela literatura europeia, africana e também indígena, que agora, graças ao esforço de muitos estudiosos que estão resgatando histórias que só existiam na oralidade, estamos tendo mais acesso. Desse todo é que a literatura brasileira se origina e por isso é tão importante também estudarmos a literatura africana. Niketche, Uma História de Poligamia da escritora moçambicana Paulina Chiziane, é uma obra que retrata muito bem a sociedade moçambicana.

         Paulina Chiziane nasceu em 1955 e foi a primeira mulher moçambicana a ter um romance publicado. Só isso já seria um feito extraordinário, em uma sociedade tão machista, mas ela ainda ganhou o Prêmio Camões, o maior prêmio em língua portuguesa, pelo conjunto de sua obra, o que demonstra a qualidade de sua narrativa.

          Chiziane é uma guerreira. Primeiro, participou ativamente do movimento de libertação de Moçambique que só se tornou independente de Portugal em 1975. Depois, abandonou a política para se dedicar à escrita o que também nunca foi fácil, pois seus romances também eram perseguidos. Em entrevista, ela declarou: “Infelizmente, nos países recém-independentes, a literatura não é um espaço de liberdade. No meu caso, por exemplo, tinha que escrever de acordo com as mil autoridades que o país tem. É a igreja, a política ou as pessoas, tenho de as escrever bonitas, por quê? Quero a liberdade de poder mostrar à sociedade o lado positivo e negativo das coisas e não escrevo para agradar a ninguém.”

          A escritora ficou tão desgostosa que, em 2016, resolveu também parar de escrever, cansada de tantas lutas.

        Um dos temas que sua obra aborda é a poligamia aceita em Moçambique. Niketche trata exatamente desse tema. É a história da personagem Rami, que é casada há 20 anos com Tony, um homem que estudou e se tornou delegado de polícia, ganhou dinheiro e passa mais tempo fora do que dentro de casa.

       Rami então vai em busca de descobrir a vida do marido e começa pela amante, chamada Julieta, que ela imaginou que fosse única. As duas se batem, brigam e, para surpresa de Rami, Julieta, que está grávida, fala que Tony não aparece há meses. Vem, só de vez em quando, lhe faz um filho e some. Então ela descobre que o marido tem uma outra amante a Luiza, com quem Rami também briga a ponto das duas serem presas. Luiza também lhe conta que Tony tem outra amante, a Saly. E lá vai Rami conhecer Saly que lhe fala de Mauá, praticamente uma adolescente. Enfim, são quatro as amantes e não uma como ela tinha pensado. Aos poucos, Rami vai compreendendo que essas mulheres todas também foram enganadas como ela. Sem estudo, pobres, com filhos de Tony, dependendo de um homem para as sustentar, aceitam as migalhas de amor que Tony lhes dá.

          São mulheres de várias regiões do país, com culturas muito diferentes, o que é interessante para nos mostrar a dificuldade de se criar uma identidade moçambicana pós-independência. A formação de uma identidade que não siga a cabeça do colonizador português que quis impor seus hábitos e sua cultura. Uma identidade nacional que siga as próprias raízes moçambicanas é uma das preocupações da escritora.

          Nessas descobertas, a Rami também vai se descobrindo. Percebe como não teve qualquer educação sexual que as outras amantes tiveram. Tem um trecho do livro em que ela diz: “Entre a pornografia e a santidade, não havia nada”. E mais pra frente pergunta: “É algum crime ter uma escola de amor?”

         Rami resolve então adotar a poligamia aceita em várias regiões do país. Chama as amantes do marido, conversa com todas elas que se unem em torno dessa matriarca que é a Rami. Rami ainda faz com que o marido ajude cada uma a montar um pequeno negócio que lhes dê independência. Quando tudo parece ter se ajeitado da melhor maneira, elas descobrem que Tony tem uma outra amante e mais uma com a qual viaja a Paris sem avisar ninguém.

       Como houve um acidente de trânsito, envolvendo um homem que acabou desfigurado e ninguém tem notícias de Tony, a família do marido o declara morto, mesmo Rami sabendo que aquele cadáver não era do marido e tenha tentando avisar a sogra. Entretanto, a família de Tony estava com pressa, interessada em levar todos os bens da casa. Eles deixam Rami e seus filhos até sem cama para dormir. E ainda a fazem passar por uma antiga tradição em que o irmão do morto, Levy, tem relações sexuais com a viúva. Rami aceita tudo calada.

          Quando Tony volta, fica horrorizado e se sente culpado, mas é uma culpa de homem sem muita profundidade, sem muita verdade. Aos poucos, as amantes que se tornaram independentes economicamente vão se casando com outros homens, arrumando suas vidas e largam Tony.

          Sem alternativa, Tony reconhece a grande mulher que é sua esposa, mas até para falar isso há uma dose enorme de machismo. Ele diz: “Quero adorar-te, mas não posso. Adorar é ajoelhar. Um homem com H maiúsculo não se curva”, ou ainda, Tony continua: “Hoje queria violar as normas e dizer que te admiro e de ti tenho orgulho. Nem isso posso fazer. As mulheres é que devem sentir orgulho de seus maridos e nunca o contrário” Percebam o quanto aquela sociedade era absurdamente voltada a inferiorizar as mulheres.

        Tem uma frase que a Luiza, uma das amantes diz que é bem representativa da condição da mulher: “Não tenho ilusões. Quer seja esposa ou amante, a mulher é uma camisa que o homem usa e despe. É um lenço de papel, que se rasga e não se emenda. É sapato que descola e acaba no lixo.”

            Por fim, bem no finalzinho, Rami e Toni se abraçam e ele percebe que ela está grávida. Ele diz a ela se referindo ao filho no ventre:

            - Rami diz que é meu, diz e salva-me.

          Mas é chegada a hora da verdade e Rami diz que o filho é de Levy, o irmão de Tony com quem ela foi obrigada a ter relações sexuais. O que é um final muito criativo e interessante para que aquele homem tão insensível aos sentimentos das mulheres, prove do próprio veneno.

         É uma história narrada em primeira pessoa, pela Rami e tem assim a perspectiva pelo ponto de vista da mulher. Não é uma mulher qualquer, mas uma mulher completamente inferiorizada em uma sociedade atrasada, retrógrada, que imagina a mulher sempre abaixo do homem e sem razão. A família sempre a culpava, seja porque o marido tinha amantes, seja porque ela aceitou as amantes.

         Mesmo que no Brasil a poligamia não seja reconhecida legalmente, você tem de fazer a relação e perceber que no nosso país, o homem casado durante séculos teve uma ou mais amantes como se fosse a coisa mais natural do mundo. E aquela mulher brasileira, que não estudava, não trabalhava, somente quando foi ao mercado de trabalho e se tornou independente como as amantes da história, é que começou a alterar essa situação. Entretanto, ainda é uma mudança bem pequena. É muito comum, o homem ir fazendo filhos com várias mulheres e deixando os filhos com as mulheres para que elas o criem. Muitos acham que não precisam nem pagar pensão às crianças. Há exceções? Claro que sim. Há muitos homens que são pais maravilhosos, mas não são a maioria. Até pelo censo é possível perceber o número enorme de casas que são mantidas atualmente apenas por mulheres

         O livro, mesmo que fale tanto da condição da mulher, é um alerta para os homens, para que fiquem atentos e não repitam os mesmo erros.

       Não se esqueça também que o fato das amantes serem de diversas regiões de Moçambique é intencional. A escritora quer mostrar, ao mesmo tempo, a busca por uma identidade nacional, mas também demonstrar que não importa a região, a mulher é sempre um ser para ficar em segundo plano, de acordo com a sociedade moçambicana.

        Quanto à narrativa, ela é do começo ao fim, construída por frases curtas e uma das marcas principais é o uso de frases ou palavras seguidas que buscam intensificar o sentido. Por exemplo: o amor recebido dura apenas um sopro, um flash de fotografia, simples pestanejar de vida. Vejam: a escritora usa três imagens para explicar o tempo de duração do amor: um sopro, um flash, um pestanejar. Outro exemplo: quando a menopausa chega, está seca, está gasta, estéril. De novo o reforço para intensificar o que a narrativa quer realçar.

       Já o título Niketche é o nome de uma dança da tribo macua, uma dança do amor em que as jovens de tangas e missangas dançam para mostrar que já são mulheres, já estão maduras como frutas. Prontas para a vida, ou para serem "adquiridas" por homens.

        É um livro muito interessante, mas também um pouco diferente do que estamos acostumados. Por isso é preciso ler prestando atenção aos detalhes e a essa estética diferente.

Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=frJzCBVsqkI

FICHA TÉCNICA

Título Original – Niketche - Uma História de Poligamia

Edição Original – 2002

Edição utilizada nessa resenha: 2022

Editora - Companhia das Letras SP

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