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           NOVE NOITES

 

         

           Nove Noites, de Bernardo Carvalho, foi lançado em 2000, ganhou vários prêmios e faz parte da produção contemporânea em literatura brasileira. 

          Sobre o autor, é interessante saber que Bernardo, além de escritor é também jornalista, nascido no Rio de Janeiro e tem outros livros publicados. Entretanto, Nove Noites é sua principal obra.

          Quando a história se inicia, começa por uma espécie de carta que é muito bem destacada porque ela vem em itálico, que é a fonte que normalmente utilizamos para mostrar que o texto não é nosso, mas de outra pessoa. É preciso ler com muita atenção essa primeira carta porque ela vai dar, para nós leitores, muitas dicas e muitas respostas sobre a história que será contada. Ela é fundamental para entendermos o livro.

          Logo nas primeiras linhas está escrito:

Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar em uma terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui.

          Parece que essa carta, escrita por alguém que se identifica como um sertanejo, é endereçada a uma pessoa que não sabemos quem é. Isso atiça a nossa curiosidade, mas, ao dizer que verdade e mentira podem não ser muito claras, o autor do livro já está nos alertando que será difícil para esse personagem, destinatário da carta, descobrir onde está a verdade e onde está a mentira.

          Logo após, em outra frase chave, o sertanejo diz:

Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam...

        De novo, essa pretensa carta nos diz que não será fácil descobrirmos o que aconteceu porque está enterrado no passado. Quando alguém é enterrado leva com ele para o túmulo as suas memórias e mesmo que consigamos exumar o corpo, as memórias não podem ser exumadas.

         Então já sabemos que vai ser difícil diferenciar verdade e mentira, já fomos alertados que não será possível resgatar a memória de quem morreu e aí ele deixa um pouco mais claro sobre o que será a história do livro, quando diz que essa pessoa para quem o sertanejo escreve a carta virá baseado em fatos incontestáveis. E que fatos são esses? Que o antropólogo americano Buell Quain, e ele frisa, "meu amigo", amigo do sertanejo que está escrevendo a carta, se matou em 1939, aos vinte sete anos, sem deixar explicações pelo seu suicídio. Conta ainda que ele se retalhou e se enforcou, quando estava voltando da aldeia para a cidade na companhia de dois índios.

          A carta ainda diz: Passei anos a sua espera seja você quem for.

         E começa a dar detalhes quando ele viu pela primeira vez o antropólogo. Conta que o americano chegou na pequena cidade de Carolina, nas margens do Tocantins, em um pequeno avião da Condor, apenas cinco meses antes de sua morte. Ele lembra que o Dr. Buell estava vestido de forma imprópria para o lugar, o que nos remete aos estrangeiros que não sabem bem como vestir quando estão em um país tropical como o Brasil e, principalmente, em meio à floresta amazônica. O antropólogo vinha ao Brasil para estudar os índios Krahô.

         Por que o autor chama atenção para esse fato? Porque a roupa diz muito sobre alguém. Você não estar vestido de forma apropriada para um lugar tão difícil como era a região do Rio Tocantins, na década de 30, primeiro lhe coloca em uma situação desconfortável e depois, mostra aos outros que você é um estranho, quase um intruso naquele lugar.

           O sertanejo, autor da carta, ainda diz que, desde o começo, só ele viu o desespero nos olhos do americano e que deu a ele sua amizade, da mesma forma que sempre deu sua amizade aos índios com quem sempre conviveu, desde pequeno, já que o autor da carta trabalhava no posto Manuel da Nóbrega e que depois viria a ser demitido por Cildo Meireles.

         Aqui, é necessário fazer um parêntese para dizer que esse posto de proteção indígena realmente existiu, bem como Cildo Meireles, que trabalhou muito tempo com os índios. O que nos leva a refletir se esse sertanejo é um personagem fictício ou se ele realmente existiu.

        Por fim, ele diz que o Dr. Buell deixou algumas cartas, inclusive para esse sertanejo que a gente ainda não sabe o nome, mas que mais pra frente na narrativa, vamos descobrir que se chama Manoel Perna. Ele era sertanejo, engenheiro, e também responsável pelo posto Manuel da Nóbrega.

          Manoel Perna enviou as cartas do Dr. Buell para a professora pesquisadora que acompanhava a pesquisa do americano para que ela as enviasse para a família do rapaz. Entretanto, escondeu consigo uma outra carta escrita em inglês. E o sertanejo diz mais, diz que guardou a carta porque era a única que não era para os familiares do Buell e porque ela tinha destinatário e que antes da carta ir para os Estados Unidos, ela iria para o Rio de Janeiro e que ele havia ficado com a carta para proteger o seu destinatário porque eram tempos difíceis.

         E aí, nos perguntamos: que tempos difíceis? Década de 30, ditadura de Getúlio Vargas e uma forte repressão e censura. O sertanejo conta que enviou um bilhete cifrado ao destinatário para falar da carta, mas que só a entregaria em mãos. Entretanto, esse destinatário nunca foi buscá-la. E termina dizendo que não pode desafiar a morte, que no dia seguinte tem de pegar uma balsa, mas que antes deixa este testamento “para quando você vier”. Nesse ponto, já conseguimos entender que o sertanejo Manoel Perna está falando o tempo todo, desde o início, com o destinatário da carta que ele guardou.

          Essa primeira carta termina. E começa um jornalista falando do seu contato com a notícia da morte do americano e de seu interesse em desvendar essa história, que havia ocorrido 62 anos antes. Então parece, para nós leitores, que o jornalista fará um livro-reportagem. Descreve que Buell Quain era aluno de pós-graduação no departamento de antropologia da Universidade de Columbia, que já havia viajado para várias partes do mundo antes de entrar para a universidade, conta sobre a família do americano, o divórcio de seus pais e lembra que dois meses antes do suicídio, ele havia escrito à sua orientadora dizendo que teria de voltar aos Estados Unidos por causa de questões familiares.

         Para mostrar que os fatos são reais, coloca foto do antropólogo e foto da equipe de pesquisadores estrangeiros no Brasil.

        Aí, novamente, o relato do jornalista/escritor é interrompido por outra carta de Manoel Perna e isso vai acontecer até o final do livro. O tempo todo vão se alternar, de um lado, o relato praticamente jornalístico, e de outro, essas cartas escritas por Manoel Perna. A narrativa do livro será então em duas vozes. A voz do Manoel Perna que vem em itálico como se fossem cartas, (mas que ele vai chamar mais pra frente de testamento e que parece ter conhecido bem o etnólogo americano) e o relato jornalístico que poderia ser do próprio autor do livro, Bernardo Carvalho.

       Há um contraste grande entre as duas narrativas porque, ao contrário do relato jornalístico em que o autor vai narrando os fatos e a dificuldade para desvendar o mistério da morte, as cartas nunca são muito claras e sempre deixam algo no ar como se o autor das cartas não pudesse ou não quisesse contar tudo que sabe.

       Nessa segunda carta, ou nesse testamento a que ele se referiu na primeira carta, ele começa exatamente da mesma forma :Isto é para quando que vier... Essa frase vai dar início a quase todas as vezes em que é o sertanejo que fala. O tempo todo o sertanejo Manoel Perna está esperando o destinatário da carta a quem Buell escreveu e que ele guardou.

       De repente, nós leitores começamos a notar que o relato jornalístico também repete algumas frases, quando o jornalista inicia vários trechos, dizendo:

Ninguém nunca me perguntou e, por isso, nunca precisei responder.

        E então o jornalista/narrador faz uma revelação: ele também morou no Xingu durante sua infância, numa fazenda no meio da floresta, que o pai havia resolvido fundar em 1970, graças a um programa do governo militar que oferecia as terras por um valor muito baixo. Conta que sua casa era isolada e suspensa sobre palafitas e da dificuldade em alcançá-la, o que, normalmente, só se fazia em um pequeno avião, pilotado pelo próprio pai.

         Ele fala um pouco de si e depois retorna à sua investigação sobre a morte de Buell. O jornalista/narrador vai, inclusive, em 2001, visitar os índios Krahô, mas não descobre muita coisa. Detalha como foi sua experiência de ficar na aldeia, o que nos possibilita recriar um pouco o ambiente em que o americano viveu, inclusive, o desconforto em relação às condições precárias em que os índios vivem. Assim em Nove Noites também podemos conhecer um pouco mais sobre o universo indígena, lembrando que o autor jamais coloca o índio como uma vítima da sociedade, como costuma acontecer em várias obras.

        Conta que em uma das cartas endereçada à família, o etnólogo deixou seus investimentos para a pesquisa de sua orientadora e o resto pediu que fosse enviado a sua mãe e irmã que estavam quebradas, o que a irmã de Buell contestou dizendo que não sabia da onde o irmão havia tido essa ideia e que tinha muito receio de que alguma carta sua tivesse dado a impressão errada ao irmão que achou que poderia valer mais morto do que vivo.

          O testamento, ou as cartas do sertanejo Manoel Perna também falam que Buell parecia estar fugindo de algo ou talvez de si próprio. Então ele revela que Buell havia morado em uma ilha no Pacífico e que nessa ilha havia sido fotografado e que não havia gostado da fotografia porque havia sido pego de surpresa e pareceu muito assustado frente ao desconhecido. Ele não queria se sentir inseguro frente ao desconhecido, e por isso, até sua escolha de vir para o Brasil, pesquisar no meio da Floresta, era uma maneira de enfrentar o desconhecido.

          Esse fotógrafo nunca mais conseguiu fotografá-lo, a não ser em seu apartamento em Nova York, dias antes de Buell vir para o Brasil. O sertanejo revela então que a carta que ele guardava era justamente endereçada a esse fotógrafo. Conta ainda que o fotógrafo havia traído sua amizade com Buell, se relacionando com uma mulher por quem Buell estava apaixonado. Há no livro também algumas insinuações de que Buell tivesse tido alguns relacionamentos homossexuais, mas isso, não fica muito claro.

          Sobre o título do livro, as nove noites seriam as noites em que o sertanejo e o americano Buell conversaram e que ele conheceu melhor o antropólogo e soube de alguns de seus segredos.

        Quase no final do livro, o jornalista novamente começando com as mesmas frases: Ninguém nunca me perguntou. E por isso também não precisei responder, passa a falar do seu pai, do alcoolismo, da internação e que, ao lado do leito do pai, havia um americano que gritava Bill Cohen. Seu pai morreu meses depois. O jornalista passou anos sem se lembrar do fato até que leu no jornal uma notícia em que era citado o suicídio de Buell Quain e, pela primeira vez, ele percebeu que era esse o nome que o doente chamava. Descobriu que esse americano doente era o fotógrafo Andrew Parsons que tinha vindo para o Brasil por volta de 1940 e nunca mais voltou para casa.

        O jornalista também descobre que o filho do fotógrafo mora em Nova York e vai conversar com ele. Finge ser um funcionário de uma empresa de entregas porque o filho do fotógrafo se recusa a falar com jornalista. Entabula um conversa e, para sua surpresa, o filho do fotógrafo lhe diz que, na verdade, o fotógrafo Andrew Parsons não era realmente seu pai e que havia lhe contado que o seu verdadeiro pai havia morrido no coração do Brasil. Desta forma, o jornalista desconfia então que aquele era o filho do antropólogo com a mulher que os dois amigos amaram.

        Creio que a principal marca do livro é que nós, leitores, não conseguimos distinguir com clareza o que é realidade e o que não é, o que é investigação jornalística e o que é romance.

          Nos agradecimentos, o próprio autor reforça essa marca e diz:

Este é um livro de ficção, embora esteja baseado em fatos, experiências e pessoas reais. É uma combinação de memória e imaginação – como todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta.

         Outra marca importante é que vai ser um livro com dois narradores: o sertanejo Manoel Perna e o jornalista, ambos narrando em primeira pessoa. Apesar desses dois narradores irem, cada um do seu lado, completando a história do jovem Buell que se suicidou, não ficamos sabendo sobre a suposta mulher que o traiu e nem sobre o fotógrafo. Nós, leitores, não temos acesso a esses dois personagens.

          Depois de conhecer o filho do fotógrafo, o jornalista entende que não há mais onde e com quem investigar, já que um pouco antes já havia mencionado que o próprio Manoel Perna morrera afogado no rio Tocantins, tentando salvar a neta, em 1946, apenas sete anos depois do suicídio de Buell.

         Então, quem escreveu o testamento? Obviamente o próprio Bernardo Carvalho que se colocou no lugar do Manoel Perna, usou desse artifício para dar mais humanidade e mais intimidade à narrativa, fazendo um contraponto com a sua narrativa jornalística.

Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=AyPFbJJccoo

FICHA TÉCNICA

Título Original – Nove Noites

Edição Original – 2002

Edição utilizada nessa resenha: 2006

Editora: Companhia das Letras - São Paulo

Páginas: 151

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