Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
O ACONTECIMENTO
Aqui no site, nós começamos a falar da ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2022, Annie Ernaux, pelo livro O Lugar que, apesar de não ser o seu primeiro livro, nos conta a origem de seu pai e de sua própria origem.
O livro escolhido para dar continuidade ao nosso olhar é O Acontecimento. E por que escolhemos justamente esse livro para analisar depois de O Lugar? Porque é seu livro mais polêmico e nos permite perceber com mais exatidão a importância de uma obra que aparentemente, e só aparentemente, parece tão pessoal, tão autobiográfica.
O Acontecimento narra o momento em que Annie, então uma jovem universitária de apenas 23 anos, engravida sem intenção, e fica em dúvida sobre o que deve fazer. O pai da criança é um namorado novo, tão jovem quanto ela e que não a apoia. Tão pouco, Annie pode contar com seus pais que a recriminariam e ficariam imensamente envergonhados com sua gravidez. Como se a única universitária da família, aquela em que eles depositaram todas as suas esperanças, tivesse falhado.
Frente à tal situação tão difícil, Annie resolve abortar. Só que o aborto na França, em meados dos anos 60, era proibido e ela tem de recorrer a uma clínica clandestina. Quer dizer, não era nem uma clínica era uma enfermeira, apelidada de “fazedora de anjos”, que fazia os abortos em sua casa, sem qualquer segurança sanitária, de uma forma brutal, o que fez com que o aborto de Annie tivesse complicações e ela terminasse na emergência de um hospital.
Durante anos, ela foi incapaz de falar sobre isso. Mas, nesse livro, essa experiência traumática é reconstruída pela autora, mostrando a solidão enfrentada por ela em todo esse processo. A narrativa se passa em Rouen, onde ela faz faculdade, e começa justamente no momento em que sua menstruação está atrasada. Ela, como milhares de jovens, havia tido relações com o namorado sem preservativo e sem tomar pílula, em uma atitude bem ingênua, imaginando talvez que uma gravidez indesejada só acontecesse com as outras mulheres.
A partir daí, a autora vai mostrando seu sofrimento. Ela queria abortar, mas não tinha sequer como perguntar a alguém onde poderia fazer isso. O aborto só foi legalizado na França em 1975 e hoje, cabe a mulher decidir sobre seu corpo. O único limite é que só pode ser feito até 14 semanas, cerca de 3 meses de gravidez. Depois desse prazo, só se houver risco de vida para a mulher, ou má formação do feto.
Tanto O Lugar como O Acontecimento são livros muito curtinhos, o que causa certo estranhamento. A mesma crítica que eu fiz em O Lugar cabe também em O Acontecimento. Creio que caberia aprofundar um pouco mais sobre o assunto, levar a história a discutir de forma mais abrangente os riscos do aborto clandestino e da hipocrisia da sociedade dos anos 60 que, em nome de uma moral, colocava em risco a vida de tantas jovens. Claro, que isso está implícito na história, mas senti falta de um olhar mais crítico. Além disso, a própria história, se ela não é apenas autobiográfica, se há também um dose de ficção, essa poderia ser mais ampliada.
Annie Leroux, que hoje tem 82 anos, esteve na Festa Literária de Paraty, contou do momento em que soube ser a ganhadora do Nobel e encantou a todos com sua honestidade, uma marca de sua personalidade que também está presente em seus livros. Justamente por essa narrativa sociobiográfica, bastante original em que ela relata momentos marcantes de sua biografia, entremeada de ficção e contexto social, que tornam a sua obra diferenciada.
Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=Rgo5O27Wsj8
FICHA TÉCNICA
Título Original – L'Événement
Edição Original – 2000
Edição utilizada nessa resenha: 2022
Editora - Fósforo
Páginas: 80