Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
O FIO DAS MISSANGAS*
O Fio das Missangas é mais um livro do escritor moçambicano Mia Couto. Na nossa tentativa de buscar gêneros diferentes em cada autor, O Fio das Missangas não é um romance, mas um livro de contos. São ao todo 29 contos curtos.
Vários contos trazem o olhar feminino, às vezes, em primeira pessoa, e em outras, é um homem observando uma mulher. Nesses contos, a mulher é sempre um ser que sofre a dominação masculina, seja de um marido, pai, irmão, ou companheiro. Podem ser mulheres jovens, ingênuas, mulheres experientes... Há uma crítica bastante evidente de Couto, mostrando a difícil condição de ser mulher em seu país e também no mundo. Há uma frase forte no conto Os Olhos dos Mortos em que a personagem feminina olhando um retrato em que o homem está na frente, diz: "Surjo atrás desfocada, esquecida. Sem pertença, nem presença.” Essa frase consegue resumir muito bem a posição da mulher, como ela é considerada alguém inferior na sociedade. A mulher tem consciência do seu papel e sofre.
Há também contos em que o personagem principal ou personagens principais são homens, mas nunca são homens comuns, são personagens singulares em que o autor pega uma determinada característica e carrega nas cores. Mia não é um autor que retrata a realidade exatamente como ela é, a maior parte do tempo. Sua escrita é carregada de surrealismo e de um intenso lirismo. Mia é um poeta, mesmo escrevendo prosa.
Em três momentos, o autor faz referências ao título do livro. Na epígrafe, quando ele diz que todo mundo vê as missangas, mas ninguém nota o fio e faz uma comparação dizendo que assim também é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo. Mia Couto gosta dessa analogia. Ele já havia dito em Terra Sonâmbula que a terra era uma costureira de sonhos e agora, novamente, busca a imagem da costura, como se o tempo e a vida fossem pedaços que o poeta vai juntando.
Depois, no meio do livro, vai haver um conto chamado O fio e as missangas em que um homem o personagem conhecido como JMC, um apaixonado por mulheres diz que “ A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas, as missangas....”
E por fim, no último conto, Peixe para Eulália, Mia Couto termina o livro dizendo: “Vale não haver escassez de loucos. Uns seguindo-se aos outros, em rosário. Como contas de missanga, alinhadas no fio da descrença.” É bastante interessante esse arremate do livro porque, nesse momento, ele coloca os poetas, as mulheres e os loucos como iguais. Todos são missangas.
É um livro gostoso, fácil de ler, mesmo sendo o português de Moçambique. Entretanto, é preciso sempre um segundo olhar porque nem sempre o que está literalmente escrito é o que o autor quer passar. Mia Couto usa bastante linguagem figurada.
Creio que O Fio das Missangas só tem um senão. Mesmo sendo esse o projeto do livro, de contos curtos, há contos que mereciam ser mais desenvolvidos.
Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=zHvy8eGR5vQ
FICHA TÉCNICA
Título Original – O Fio das Missangas
Edição Original – 2004
Edição utilizada nessa resenha – 2009
Editora Companhia da Letras – São Paulo
Número de páginas – 148
* Miçangas em português do Brasil é com "ç" e não com dois "s". Entretanto, nessa resenha, optamos pelo português do livro que é o português de Moçambique, em que miçanga é escrito com dois "S"