Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
O GIGANTE ENTERRADO
Na minha opinião, acredito que só é possível se dizer que se conhece minimamente a obra de um escritor quando se lê pelo menos três livros importantes e de fases distintas do autor. Isso é muito perceptível na obra de Kazuo Ishiguro. Enquanto em os Vestígios do Dia(1989) há uma narrativa muito presa à realidade, em Não me Abandone Jamais(2005) já há uma tentativa tímida de se desprender. Os dois eram livros corretamente escritos, sensíveis. Kazuo é um mestre na arte de narrar. Entretanto, O Gigante Enterrado, seu último livro, de 2015, também é tudo isso, enquanto construção da narrativa, mas, sobretudo, é uma grande história. Há em O Gigante Enterrado, fortemente, o elemento da originalidade que talvez falte nos dois outros livros citados. Há mais do que isso, há ousadia do escritor em enveredar pelo caminho do fantástico para abordar algo que é muito real, a nossa finitude ou nossa mortalidade.
O romance se passa na Grã-Bretanha em um tempo não definido, já que a alusão ao Rei Arthur também não é muito precisa. Como sabemos, não há prova alguma que Arthur tenha existido. Entretanto, sabemos que o romance se desenrola durante as guerras entre bretões e saxões e que deixou o território em ruínas, o que nos leva a crer que seja por volta do século VI. Mas é também o tempo dos mitos, da existência de ogros, dragões e de outras criaturas fantásticas, reunidas em um local em que tudo pode acontecer.
Como eu disse anteriormente nas resenhas dos outros livros, a memória é algo muito importante para o escritor. Em O Gigante Enterrado, o casal de idosos que são os protagonistas da história, Beatrice e Axl, está claramente sofrendo da perda da memória. E o que isso significa? Quando não lembramos do nosso passado, o que e como isso impacta em nossa vida futura? E o mais interessante, é que a perda da memória parece não ser exclusiva dos idosos, há uma estranha névoa que envolve a todos.
Os dois idosos fazem esforço para lembrar, mas é quase pior. Pois os fragmentos de memória, mostram o quanto eles esqueceram, ou levanta a questão, será que eles se lembram apenas do que querem lembrar. O quanto nos escondemos atrás de uma memória seletiva e que não nos confronta com o nosso passado?
Beatrice e Axl, o casal de idosos, lembram-se vagamente que têm um filho morando em uma outra vila e decidem procurá-lo. É uma viagem que eles sabem que precisam fazer. O fato desencadeador que talvez tenha feito com que eles tenham criado coragem para isso, é muito interessante. Eles moram em uma pequena comunidade e em um determinado momento são proibidos pelos chefes da comunidade de usar vela em seu quarto, o que os deixa em completa escuridão. Então, é nesse momento, que eles decidem ir. Há um jogo simbólico de escuridão, perda de memória, a proibição da vela e, consequentemente, da luz. Mais do que o filho, o casal vai buscar algo que clareie suas vidas. Fica óbvio, desde o início, que essa não é uma jornada qualquer. É uma história muito bonita.
Ishiguro em alguns momentos, introduz o leitor na aventura. Como se estivesse contando a história de forma muito direta a cada um de nós. Nesses momentos, ele se dirige ao leitor com o tratamento “você” e faz alguma observação que talvez um leitor atento estranhasse ou precisasse de mais dados para compreender totalmente o que ele ou sua história quisessem passar. Por exemplo, o casal de idosos está caminhando em silêncio, o que não é comum entre os dois. Então, a narrativa diz: Você deve estar estranhando o fato deles conversarem tão pouco...ou em outra passagem Você não teria achado aquela casa comunitária muito diferente... e assim por diante. Por mais que inicialmente, essa nossa inclusão na história provoque um certo estranhamento, depois ela se torna confortável a ponto de gostarmos da narrativa ser completada por essas explicações, dessas falas do autor diretamente com o seu leitor.
O Gigante Enterrado é um dos melhores livros que eu já li nos últimos tempos e que por si só, talvez já justificasse Kazuo Ishiguro ter ganho o Nobel de Literatura de 2017. Creio que não é um livro que se esgota em uma única leitura, merece, inclusive, uma releitura, porque, com certeza, são tantos detalhes que muitos nos escapam da primeira vez.
Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=OASMS2giMzI
FICHA TÉCNICA
Título Original – The Burried Giant
Edição Original – 2015
Edição utilizada nessa resenha – 2017
Editora companhia das Letras – São Paulo
Número de páginas – 396