Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
O GRANDE MENTECAPTO
Há um período da nossa literatura que anda meio esquecido. Já falei do livro que mais vendeu na década de 80 que foi Feliz Ano Velho e que tem resenha aqui no site. Mas um grande nome daquela época foi o de Fernando Sabino. O escritor mineiro estava realmente na moda nos anos 80. Ele escrevia crônicas em vários dos mais importantes veículos de comunicação do país e seus romances eram lidos e estudados. O que aconteceu? Seus livros deixaram de ter qualidade? Claro que não. Mas o interesse da literatura também é cíclico e alguns escritores caem no esquecimento para serem relembrados de tempos em tempos.
Fernando Sabino e Clarice Lispector foram contemporâneos. Clarice nasceu em 1920 e Fernando em 1923, mas Clarice fez sucesso bem antes de Sabino. Enquanto Clarice morreu em 1977, a maior parte da produção literária de Sabino é das décadas de 80, 90 e início dos anos 2000. E aí você vai me perguntar, mas e o livro talvez mais famoso de Fernando Sabino, O Encontro Marcado, que é da década de 50? Pois é. O Encontro Marcado é uma exceção na trajetória do escritor. Por isso que eu sempre digo que não basta ler um livro para entender a obra inteira de um autor. É preciso ler vários e de épocas diferentes.
De 1956 até 1979, um período de mais de 20 anos, Sabino não escreveu mais nenhum romance e se dedicou às crônicas. É somente em 1979 que vai aparecer seu segundo romance, O Grande Mentecapto.
Enquanto O Encontro Marcado é muito autobiográfico, O Grande Mentecapto já tem um certo distanciamento do narrador, mas ainda não é totalmente. A história mais uma vez se passa em Minas Gerais, terra do escritor, e o narrador por vezes se deixa mostrar como o próprio escritor.
Ele diz que se propôs a narrar as aventuras do seu personagem principal Geraldo Viramundo. E quem é Viramundo? Viramundo é um apelido porque o personagem é um andarilho. Seu nome verdadeiro é Geraldo Boaventura e, apesar de trazer essa boa sorte no sobrenome, não foi bem assim que a vida de Geraldo transcorreu.
Quando criança, ele morava com seus pais e seus irmãos em uma cidadezinha do sertão de Minas Gerais chamada Rio Acima, e a estrada de Belo Horizonte ao Rio de Janeiro passava bem em sua porta. Foi uma infância comum como de tantas crianças pobres do interior do Brasil e tem um trecho do livro que eu gosto muito em que Sabino fala de tanta coisa que é comum nessa infância, como ter sarampo, catapora, sarna para se coçar, infância que amarrou lata vazia em rabo de gato, caiu da árvore, se machucou, jogou futebol com bola de meia, foi coroinha da igreja, fugiu de casa e apanhou, nadou no rio, contou estrelas no céu, assobiou e chupou cana e por aí vai, o trecho é longo. Claro que é uma infância de uma outra época, mas que é uma delícia conhecer ou relembrar.
Entretanto, um acontecimento modificou completamente a infância de Viramundo, virou a chavinha para o outro lado, como eu costumo dizer. O trem não parava na cidade de Geraldo, mas a molecada sabia exatamente a hora em que ele passava e sempre ficava perto da estrada de ferro para vê-lo passar imponente, soltando fumaça. Geraldo não se conformava que o trem não parasse em sua cidade, por mais que os irmãos lhe dessem vários motivos como, por exemplo, que era porque não devia ter ninguém para tomar o trem. Geraldo não se satisfazia e pensava que não tinha ninguém por que todos sabiam que o trem não parava, até que um dia chegou à conclusão que o trem só não parava porque o maquinista não queria.
Também nesse dia disse que se ele, Geraldo quisesse, o trem pararia. Mas todo mundo duvidou, pois lhe lembraram que nem se ele se deitasse em cima da linha de trem, pois já tinham visto um boi ser esquartejado pela locomotiva porque estava no caminho. Geraldo apostou com todo mundo que conseguiria fazer o trem parar e no grande dia, lá foi toda a molecada para ver o que Geraldo teria coragem de fazer.
Claro que eu não vou contar o que aconteceu. Mas é esse acontecimento que altera completamente a vida do personagem. Viramundo vai andar por toda Minas Gerais, e é uma oportunidade do autor fazer uma grande imersão pelo seu estado que ele conhece tão bem.
Há situações que o personagem enfrenta que são completamente estapafúrdias e isso é proposital, já que Viramundo tem alguma coisa de louco, mas também como todo louco, às vezes, uma sensatez que escapa às pessoas comuns. Mentecapto, que significa louco, já é um alerta do autor, que não quer esconder o jogo e afirma que apenas conta o que aconteceu.
Em um trecho diz:
“Limito-me a narrar-lhe os feitos e desfeitos, cão de fila que lhe segue fielmente os passos, ainda que estes me conduzam ao abismo da minha ruína literária.”
Aliás, essa é uma das características dessa narrativa e que lembra muito a de vários escritores que também foram cronistas como Sabino que é de conversar com o leitor durante o romance. Ele é um narrador que, inclusive, reclama do trabalho. Em outro trecho diz:
“Espinhosa é a missão do escritor. Mormente quando se empenha em fazer o levantamento da vida de personagem tão abstruso como o que veio a cruzar o meu já comprometido destino literário.” Lembrando que abstruso significa confuso, difícil de compreender. E no fim ainda completa:
“E longe de mim a pretensão de com isso ingressar na prestigiosa corrente do realismo mágico tão em voga ultimamente.”, ou seja, ele relata que sabe que está contando uma história meio fantástica, mas imediatamente já diz que não quer seguir a moda.
Sabino tem um estilo muito próprio de escrever fazendo humor. Ainda durante o romance faz várias referências a escritores mineiros reais como Pedro Nava ou Drummond. Essa mineirice de lugares e pessoas domina completamente sua narrativa.
O Grande Mentecapto, também conhecido como D. Quixote brasileiro, se tornou filme na década de 80 e você ainda consegue assistir pela internet.
Pra terminar é preciso prestar bastante atenção como Viramundo vai se transformando ao longo do livro e, ao final, tentar descobrir quem é ou sempre foi o verdadeiro Viramundo.
Uma curiosidade sobre Fernando Sabino é que ele trocava muitas cartas com outros escritores. Essas cartas estão reunidas em volumes como Cartas perto do coração - correspondência com Clarice Lispector, ou Cartas na mesa - correspondência com Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino, ou ainda Cartas a um jovem escritor e suas respostas - correspondência com Mário de Andrade, que valem a pena ser lidas porque nos permitem conhecer bastante não apenas sobre Sabino, mas também sobre seus interlocutores.
Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=dsLwgzhHANQ
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