Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
O JOGO DA AMARELINHA
O Jogo da Amarelinha do escritor argentino Julio Cortázar é seguramente um dos livros mais difíceis de ler que eu conheço. Calma!! Não é pra você ir embora. É só para você enfrentar a leitura, já preparado.
Tem de ler? Claro que sim. É um clássico, que revolucionou a maneira de escrever, na medida que o autor desconstruiu tudo a que as pessoas estavam acostumadas. Mas, nessa resenha, vou lhe dar pelo menos as linhas mestras para que você possa fazer a leitura com mais segurança.
Primeiro vamos entender quem foi o escritor e qual é o momento da sua escrita. Cortázar nasceu em 1914, início do século XX, na Bélgica, onde seus pais, que eram argentinos moravam, mas, com apenas 3 anos, o escritor foi viver na Argentina, e sempre se considerou argentino. Mais tarde, ele adquire também a cidadania francesa, mas nunca abriu mão da cidadania argentina.
Foi uma criança triste e doente, e como quase toda criança doente, leu muito durante sua infância. Sobre essa fase de sua vida, ele disse em entrevista: “Passei minha infância em uma bruma de duendes, de elfos e com um sentido de espaço e de tempo, diferente dos demais.” Ou seja, sua experiência na infância foi muito diferente de uma criança saudável. E, claro, isso vai marcar sua vida e sua escrita também.
Quando jovem, ele se torna professor de letras e começa a escrever poemas. Como muitos autores, ele mesmo bancou seu primeiro livro de poemas, chamado Presencia. Cortázar não vai ser apenas escritor, mas também um crítico literário, com vários trabalhos em que ele analisa os romances, os contos, o fazer literário. Em 1951, com 37 anos, ele ganha uma bolsa de estudo na França e como não concordava com a ditadura que existia na Argentina, resolve se mudar definitivamente para Paris, cidade onde viveu até sua morte em 1984.
Mais maduro, foi um escritor que se envolveu bastante em movimentos que buscavam tirar a América do Sul de várias ditaduras. Nunca claro, empunhando armas, mas emprestando seu prestígio e até doando direitos autorais de seus livros para movimentos de democratização.
Quando falei da obra de Gabriel Garcia Marques, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes falei também sobre o boom latino-americano, que foi quando quatro autores, principalmente, levaram a literatura sul americana para a Europa e lançaram luz sobre a nossa literatura, até então uma grande desconhecida dos europeus. Julio Cortázar foi um desses 4 autores, junto com aqueles que eu acabei de citar.
O Jogo da Amarelinha, cujo nome em espanhol é Rayuela, é seu principal livro, publicado em 1963. A década de 60, no mundo todo, foi uma época de mudanças, de contestações. E, claro, que houve a intenção do escritor de fazer algo diferente, o que era muito comum naquele momento, essa vontade de experimentar, e seu livro é justamente revolucionário por ter inovado, principalmente na forma, muito mais do que no conteúdo.
O livro é dividido em três partes: a primeira chamada Do lado de lá, em que o protagonista, o argentino chamado Horácio Oliveira, está vivendo em Paris, ou seja, do lado de lá do oceano. A segunda parte que se chama Do lado de Cá, quando o protagonista retornou à Argentina e uma terceira parte chamada de Outros lados e entre parênteses: Capítulos Prescindíveis. Ora, prescindível é tudo aquilo que não é fundamental, aquilo que eu não preciso realmente, que eu posso prescindir então de ler. Será?
E aí já está a principal característica do livro que é sugerir percursos de leitura. O próprio autor disse que há duas maneiras de lê-lo. A primeira é a convencional, você vai ler em sequência, do primeiro capítulo até o capítulo 56 quando a história termina, ou seja, você leu a parte de lá e a parte de cá. A segunda maneira é uma leitura orientada pelo Cortázar e que vai usar alguns capítulos da leitura convencional com outros capítulos dos chamados imprescindíveis, em um caminho que ele inventou. Sem qualquer linearidade, como se você estivesse pulando de lá pra cá, como no jogo da amarelinha. Ao final de cada capítulo, há uma indicação de pra qual capítulo você deve ir. E aí, eu preciso lhe avisar que, às vezes, faz sentido esse caminho e às vezes, não faz. E por quê? Porque os capítulos prescindíveis são elocubrações diversas. Às vezes, uma citação de algum escritor ou de algum filósofo, outras um poema, um texto de jornal, e claro, também fragmentos da história que a gente tenta juntar. Os capítulos prescindíveis estão preocupados em pensar o fazer literário.
Uma coisa que predomina nesses capítulos prescindíveis são textos de Morelli. E quem é Morelli? Morelli foi citado lá no início do livro e dizia-se que todo mundo admirava o escritor Morelli. Crê-se que Morelli seja uma espécie de alter-ego de Cortázar. Tem um trecho que eu gosto muito em que o personagem Ronald diz : “ Qualquer pessoa pode entender que Morelli não complica a vida por simples prazer e, além do mais, seu livro é uma provocação desavergonhada como todas as coisas valem a pena.” Que livro é esse a que ele se refere? Na minha opinião, ao próprio O Jogo da Amarelinha.
Uma coisa que também dificulta bastante a leitura é que o escritor argentino usa termos e frases inteiras em inglês ou francês que não são traduzidas, sem qualquer nota de rodapé e, se você não dominar os idiomas, vai ter de toda hora recorrer a um dicionário. Como por exemplo, a palavra clochard, que significa mendigo em francês e que aparece inúmeras vezes na história. Ainda falando da forma, é comum as frases ficarem incompletas, paradas no meio, ou então como no capítulo 34 em que a linha um não se liga a linha dois, mas sim à linha três e vai pulando, enquanto se você ler a linha dois, vai perceber que ela se liga a quatro e assim por diante. O fio condutor são linhas ímpares e linhas pares, mas não há qualquer instrução. Cortázar espera que você descubra isso sozinho.
Acha que acabou, que são só essas as novidades? Sinto lhe informa, mas não. Normalmente, na maioria dos livros, quando um personagem aparece pela primeira vez, o narrador diz quem é aquele personagem. Cortázar não faz isso com nenhum personagem, nem com o protagonista, que a gente não sabe bem porque está morando em Paris, se é um escritor ou apenas um desocupado. Outro exemplo é o personagem Traveler que ele cita no início, mas que nós só vamos descobrir que é um amigo antigo quando Oliveira retorna à Argentina. Também o personagem Rocamadour, que em Montevidéu chamava-se Carlos Francisco, aparece desde o primeiro capítulo, mas só vamos descobrir que é o filho de Maga, amante do protagonista, no terceiro ou quarto capítulo. Além disso, às vezes ele cita um personagem pelo nome, outras vezes pelo sobrenome, o que também confunde o leitor.
Eu lhe avisei. O Jogo da Amarelinha não é pra qualquer um.
Agora vamos à história que se passa na década de 50. Na parte de lá, ou seja em Paris, há O Clube da Serpente formado por intelectuais como o próprio Oliveira, Etienne, Ronald, Perico, Gregorovius, Babs, Wong que se encontram no bairro de Saint Germain, para discutir literatura, filosofia, ouvirem música. Maga, a amante de Oliveira também fazia parte do clube, mas era uma avoada que fazia um esforço enorme para entender dos assuntos que eles tentavam em vão lhe explicar, mas que ela esquecia em seguida. Horacio, às vezes tem um pouco de vergonha da namorada, ou até uma certa raiva por ela não se importar com esses assuntos que lhe eram tão caros.
Horácio Oliveira, nosso protagonista, diz que ele se move por Paris como uma folha seca. Gosto dessa imagem. Pois uma folha seca vai para onde o vento a levar. Não tem domínio sobre si própria ou sobre sua vida e isso define muito bem o protagonista.
Em um determinado momento Gregorovius diz para Oliveira. “Você está escondendo o jogo... Desde que o conheci, você não faz outra coisa se não procurar, mas a gente tem a impressão de que aquilo que anda procurando já está em seu bolso... E enquanto isso você estraga a vida de uma porção de pessoas.”
Essa é uma acusação grave, mas Oliveira parece não se sentir nem um pouco culpado se ele estraga a vida das outras pessoas. Ele não cobra nada de ninguém, mas também não dá nada em troca. É como se ele não se importasse muito com os outros e também consigo próprio. Ele parece, tanto do lado de lá como do lado de cá, completamente perdido, buscando algo que ele nem mesmo sabe o que é, mas que eu acredito seja uma totalidade.
Oliveira vai viver com a uruguaia Maga que, mesmo não tendo a cultura dos outros amigos, parece ser mais apta a vivenciar coisas que os outros apenas discutem. A relação dos dois não parece ser de um grande amor. O próprio Oliveira diz que eles não estão apaixonados, inclusive, ele tem uma amante chamada Pola, que Maga sabe e também parece não se importar. Aliás, essa é sempre uma postura dos personagens do livro, pois ao mesmo tempo eles parecem não ligar para nada, sempre serem contra levar uma vida normal, o que é próprio daquela época em que os valores burgueses eram muito contestados, mas, por outro lado, parece que essa normalidade da vida de seus pais, da geração anterior a deles, é no fundo o que eles anseiam. Oliveira dizia que um dia Maga iria lhe compreender que ele só lhe daria uma parte de seu tempo e apenas uma parte de sua vida.
Entretanto, por mais que ele não admita, ele ama Maga, e ama em Maga tudo o que ele não é, principalmente a capacidade de intuição de Maga que permite que ela viva a vida sem estar o tempo todo analisando-a, como faz Oliveira e os outros intelectuais do grupo tão orgulhosos de sua cultura e que, em certa medida, é desprezada por Maga. Por isso a busca por Maga desde o primeiro capítulo, é a busca da totalidade, ou seja, seria juntar dois indivíduos tão diferentes, para alcançar essa totalidade, o que obviamente é uma utopia.
Se na parte de lá, o escritor retrata uma Paris em que se busca a cultura, na parte de cá, curiosamente é uma Buenos Aires de um circo e depois de um hospício, onde a história se desenvolve. E isso não é por acaso, é uma crítica ao seu país e ao governo argentino.
Na parte de cá, Oliveira enxerga Maga em outras mulheres, o que significa mais uma vez que Maga era o seu amor, aquilo que ele tinha e nunca deu o devido valor. Era com Maga que ele tinha a quase totalidade tão desejada.
Se você quiser entender mais a obra de Cortázar, recomendo que você leia O Escorpião Encalacrado, do professor Davi Arrigucci, um grande especialista no escritor.
Normalmente, eu começo o percurso da obra de um escritor complexo como Cortazar, por suas narrativas curtas e poderia ter escolhido os contos de Cortázar, que são muitos e muito bons, mas eu acredito que O Jogo da Amarelinha é um livro que provoca em nós, leitores, um choque, e preparar o percurso talvez tivesse diminuído o choque, por isso optei por começar por ele. Quando você leitor topa ler um livro como esse tão diferente e de mais de um percurso, você está topando o jogo, o jogo da amarelinha e o objetivo tanto no jogo, como na ficção, como na vida, é sair do inferno e chegar ao céu, aquele lugar onde seremos completos, felizes sem os problemas do dia a dia.
Eu fiz três leituras desse livro, a primeira o percurso linear, depois o percurso saltando os capítulos como o escritor indica e uma terceira na qual eu leio apenas os imprescindíveis na ordem em que eles aparecem, como se eles compusessem um retrato, ou seja, eu entrei no jogo.