top of page

O PERSONAGEM

          Seus óculos eram os famosos fundos de garrafa. A gravata borboleta, em variações de preto e vermelho, era, no mínimo, pitoresca. O terno, apesar de aparentar ser do século passado, com um olhar mais atento percebi que era novo em folha, impecavelmente talhado e comprado em alguma loja cara. Os sapatos de bico fino e couro brilhante também pareciam custar bem mais reais do que o normal.

          De pernas cruzadas, ele lia, completamente alheio ao mundo, um livro de capa dura que eu não conseguia ver o título, apesar de já ter espichado os olhos várias vezes.  A enfermeira o chamou de senhor Haroldo. Achei o nome perfeito.  Combinava plenamente com aquele senhor de unhas bem cuidadas, provavelmente, em uma manicure.

          Ninguém o acompanhava e eu tentava adivinhar sua idade. Talvez uns noventa ou perto disso.

       Eu não conseguia despregar o olhar. Adoro pessoas que são praticamente personagens. Nem preciso elucubrar muito e a história nasce rapidamente. Concluí que era muito rico e sozinho. Seus filhos praticamente o abandonaram e só se interessavam pela herança por vir. Estava com um sério problema de coração, afinal, estávamos em uma clínica cardiológica e a morte talvez fosse eminente. Ele tinha um segredo e pensava que havia chegado a hora de revelar para aquela família que não se importava, que ele tinha uma outra filha, fruto de um relacionamento quando ainda era muito jovem. Ela seria sua herdeira universal.

          Claro que haveria brigas, intrigas, irmãos contra irmãos. Talvez algum crime, ou pelo menos uma tentativa de homicídio. Alguém tentaria matar a irmã até então desconhecida. Todos tinham motivo, e eu poderia, à “la Agatha Christie”, reunir todos em uma mesma casa, em um fim de semana chuvoso.

Sim, adoro novelas mexicanas. Quanto mais clichê, mais divertido! E poderia ficar nesse exercício dramático a manhã toda se a porta do consultório da minha médica não se abrisse e ela viesse de lá com um sorriso nos lábios dar um beijo e um abraço no Senhor Haroldo, que ela me apresentou como seu pai. Contou ainda que toda semana ele vinha com o motorista para almoçarem juntos e que estavam planejando viajar no próximo feriado.

         Nem deu pra disfarçar minha cara de decepção. Achei a história real muito sem graça, mas fazer o quê se as pessoas não têm imaginação?

 

SP 25/07/2023

bottom of page