Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
O QUARTINHO ESCURO
Tem gente que tem sótão, outros, porão, o meu é um quartinho escuro mesmo. Visito tão pouco, que às vezes erro o caminho e me perco no labirinto.
Há dias em que acordo animada, disposta a limpá-lo, a esfregar o chão, jogar fora tanta coisa inútil, mas quando abro a porta e me deparo com toda aquela bagunça, fecho novamente e saio correndo. Muita gente que conhece a minha mania de organização ficaria completamente abismada se visse o tal quartinho. Ainda bem que ele fica escondido e trancado a sete chaves.
Por que estou falando dele então? Não sei. Acho que é porque preciso buscar uma lembrança de uma época passada. Tão passada que já deveria ter sumido, mas eu sei que não sumiu. Nada some. Está lá no quartinho, provavelmente, embaixo de muitas caixas pesadas.
Sinto preguiça e desconforto em rever tudo aquilo que está tão bem acondicionado e há tanto tempo, que nem pesa mais na alma. Parecem lembranças de outra vida, de tanto que se tornaram antigas.
É um dia chuvoso. Sempre vou ao quartinho escuro em dias chuvosos. A porta está emperrada e eu a empurro com um pouco de força e cautela. Acendo uma luzinha fraca, não me importando com a quase escuridão. Prefiro a escuridão. Ainda bem que no quartinho não tem janela.
Vou empurrando pilhas de caixas, algumas etiquetadas, outras sem qualquer menção do que se trata. Melhor assim! No fundo, embaixo, eu a vejo, a caixa amarela e preta, como faixa de proibição de rua. Faixa de lugar lacrado, de crime em investigação. Penso duas vezes se quero pegá-la e três, se devo mesmo abri-la.
Já que me arrisquei pelo labirinto e resolvi abrir a porta, concluo que não há como voltar atrás. Respiro fundo para aspirar coragem junto com o mofo e a umidade, e tiro a tampa. Por cima, a difamada carta que veio por e-mail, mas que imprimi para que a dor se tornasse palpável. Embaixo, pilhas de bilhetes, fotos, pequenos objetos como rolhas, pétalas, chaves de algum lugar, ingressos de eventos que não estão mais em exposição há muito, muito tempo.
Revejo tudo demoradamente. Não tenho pressa. A chuva não passa e o labirinto não sai do lugar. Passo meu coração por cada item e lembro sua história novamente. Lembrança e imaginação se misturam como as gotas da chuva que formam uma poça de água no chão. Por fim, o tempo eterno se cansa e fecha a caixa mais uma vez.
Tranco a porta e empreendo o caminho de volta. Eu sei. Você sabe! De vez em vez, é preciso revisitar a dor para impedir que ela volte ou se repita com outra roupagem. É para isso que servem os quartinhos escuros.
SP 09/07/2024