
Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
O SENHOR PRESIDENTE

Sempre me perguntam se o escritor guatemalteco Miguel Ángel Asturias não fez parte do chamado boom latino americano, quando a literatura latino americana ficou mais conhecida na Europa, na década de 60. E a resposta é não. Mas essa é uma dúvida bastante comum, que até divide alguns críticos, já que Asturias ganhou o nobel de literatura na década de 60. Então, nessa resenha é para explicar um pouco porque ele não fez parte, conhecer melhor esse escritor e falar de uma de suas principais obras, o romance O Senhor Presidente.
Astúrias nasce em 1899 e durante sua infância e adolescência, até 1920, a Guatemala viveu a ditadura de Manuel Cabrera e isso marcou profundamente o escritor porque seu pai era juiz e absolveu um grupo de estudantes que eram opositores desse regime ditatorial, o que fez com que a sua família fosse, a partir disso, perseguida. A Guatemala vai viver outras ditaduras, como vários países sul americanos, inclusive, o Brasil, mas é essa ditadura do inicio do século XX que vai ser a inspiração para o romance O Senhor Presidente.
Em 1923, o escritor se muda para a Europa e vai morar em Paris por dez anos e é nesse período que ele escreve o livro. Apesar disso, o romance só seria publicado em 1946, por razões políticas porque novamente outra ditadura havia se instalado na Guatemala. Também é em Paris que Asturias vai estudar profundamente a cultura Maia e se tornar um especialista no assunto.
O interessante é que Asturias vai ter contato com várias correntes de vanguarda que estavam acontecendo na Europa, principalmente em Paris, mas ele não vai se "afrancesar", pelo contrário, ele vai mesclá-las com sua origem, e a cultura do seu país vai ser sempre seu principal tema.
....Alumia, lúmen de alúmen é assim que começa o romance O Senhor Presidente. É um começo épico, imponente chamando a luz. E se precisava chamar a luz, significa que aquele lugar, que em nenhum momento do texto vai aparecer como Guatemala, estava na escuridão. Um momento de trevas na história como é qualquer ditadura. Aliás, grande parte do romance se passa à noite ou em locais fechados, escuros como arcabouços. O próprio presidente só se vestia de preto, chapéu, terno, gravata, tudo preto.
Além de não nomear o país, o escritor também não vai dar nome ao presidente. Vai chamá-lo de senhor presidente, sua excelência, egrégio mandatário, patrão, e isso, claro, é proposital. Desta forma, o romance se torna universal. É possível vermos inúmeros pontos em comum com a ditadura militar no Brasil e de tantos outros países, sul-americanos ou não. Os horrores praticados pelos ditadores, as sessões de tortura e as mortes de todos os oponentes que pensam diferente, sem qualquer julgamento justo é uma marca comum às ditaduras.
A história vai contar como a vida do General Canales, acusado injustamente de ter matado outro militar, e também de sua filha, Camila, muda da noite para o dia, a partir dessa acusação.
O governo do presidente Cabrera, além dos militares, se cercou também de criminosos comuns e era tão violento, que as pessoas viviam sob a ameaça do medo. Por isso, que quando o pai de Camila foi tido como inimigo do Estado e foge, deixando a moça aos cuidados de seu irmão, os parentes não queriam saber dela, nem esse seu tio mais próximo. O escritor recria na ficção o medo que existiu na realidade.
A perseguição ao general leva o homem de confiança do presidente, apelidado de Miguel Cara de Anjo, a se envolver com Camila. O pai foge e a moça, completamente ingênua, perdida, fica muito doente. Miguel Cara de Anjo adulava o presidente e por isso, tinha caído em suas graças, o que também é inspirado na realidade, já que o presidente Cabrera, também gostava de ser adulado. Conta-se que nos vinte anos de seu governo foram construídos vários templos à Minerva, deusa da sabedoria, onde realizavam-se rituais não apenas em homenagem à deusa, mas também ao presidente que tinha sempre sua foto em uma espécie de altar.
Apesar do apelido do homem de confiança do presidente ser cara de anjo, o narrador diz a todo tempo que ele era belo e mau como Satã. E esse homem, que a gente nunca sabe bem do que é capaz, se apaixona profundamente por Camila, o que de alguma forma, dá outro contorno à história.
Se o amor vai prevalecer ou se vai ser destruído como tudo em que o senhor presidente toca, é uma expectativa interessante para o romance. Entretanto, a história de amor é apenas um fio narrador para mostrar o que acontecendo à sua volta. Na verdade, o que Asturias quer é denunciar as atrocidades da ditadura.
E não foram só mortes, torturas, medo...Para se ter uma ideia, durante o governo cabrista, conforme dados de estudiosos, o número de analfabetos na Guatemala teria subido de noventa e dois a noventa e sete por cento. E isso é uma marca de ditadores. Ditadores não gostam de educação e nem de cultura e costumam desaparelhar esses dois setores. Por quê? Porque quanto mais ignorante for uma população, mais fácil enganá-la e mais tempo o ditador conseguirá ficar no poder. Desconfie sempre de qualquer governante que tire verba da educação e da cultura.
A escrita de O Senhor Presidente, principalmente no começo, nos primeiros capítulos, não é muito fácil. É uma escrita fragmentada, polifônica, que também mistura trechos de poemas à prosa, mas não desanime. Tem um momento que a narrativa engata, flui e somos capazes de acompanhá-la com prazer.
Eu falei no início, que Miguel Asturias não fez parte do boom latino americano porque na década de 60, ele não era um escritor popular, como Gabriel Garcia Marques, Carlos Fuentes, Vargas Llosa ou Cortázar, que estavam vendendo muitos livros na Europa. Entretanto, Astúrias foi de uma geração anterior, predecessor de todos eles e obviamente os influenciou. E é inquestionável que sua obra tem indiscutível valor, tanto que chamou a atenção da academia sueca que lhe outorgou o Nobel. Miguel Asturias foi o primeiro romancista sul americano a receber o prêmio. Antes dele, apenas a poetiza chilena Gabriela Mistral havia ganho em 1945. Mas são coisas diferentes. Uma é você ter o reconhecimento popular que se traduz em vendas de livros e outro é você ter o reconhecimento de críticos literários que enxergam muitas vezes, o que a maioria da população leiga não vê.
Mas Asturias, mais do que um escritor, é um agente de mudanças ao abrir os olhos das pessoas de como as ditaduras são cruéis.
Para Sartre, “a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele”. Assim, mesmo que uma pessoa não tenha vivido um regime ditatorial, é com livros como O Senhor Presidente que a literatura vai além de entreter, e nos ensina a não repetir erros passados, não permitir principalmente que o Brasil ou qualquer outro país viva novamente os horrores de uma ditadura.
Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=mejw9JHoeUI
FICHA TÉCNICA
Título Original – El Señor Presidente
Edição Original – 1946
Edição utilizada nessa resenha: 2021
Editora - Mundaréu
Páginas: 360