Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
QUARTO DE DESPEJO
Quarto de Despejo é um livro singular, ou seja, não conheço outro parecido em nossa literatura. E não estou me referindo ao tipo de narrativa que é um diário, existem muitos livros que são diários, mas, principalmente, em razão da temática do diário que é o dia a dia de uma favelada. Existem livros sobre favelas? Claro que sim. Aos montes, mas dificilmente quem escreve é um morador da favela, normalmente, é um pesquisador, um sociólogo, um jornalista, e assim por diante. Além disso, é um livro precursor que abriu caminho para outros relatos.
Para entender melhor Quarto de Despejo é preciso contextualizar, entender melhor como começam e se espalham as favelas pelo Brasil. O processo de favelização começa no Rio de Janeiro, ainda no XIX, quando os escravos que haviam sido alforriados para lutar pelo Brasil na Guerra do Paraguai voltam da guerra e não têm onde morar. Não podem retornar às fazendas ou às casas dos senhores porque não são mais escravos, mas também não têm dinheiro para adquirir um imóvel. Então, eles começam a ocupar os espaços vazios da cidade, do jeito que é possível, completamente sem recursos. São barracos de tábuas em terra batida.
Depois, com a abolição, em 1888, a favelização se intensifica, pois mais ex-escravoss são, de uma hora para outra, colocados na rua. Para completar, os combatentes da Guerra de Canudos, que aconteceu no sertão da Bahia, também voltam para o Rio de Janeiro no finalzinho do século XIX sem ter onde morar e ocupam os morros que lhes lembram o morro da favela que existia na Bahia. Aquele morro na Bahia chamava-se assim porque era coberto por favela, que é o nome de uma planta. Então, com o tempo, favela vai dar o nome a esses conglomerados de pessoas sem renda nos grandes centros urbanos, ocupados, em virtude de todos esses acontecimentos, em sua maioria pela população negra. Por fim, com a perseguição e a destruição dos cortiços que existiam no Rio, também seus habitantes vão se mudar para as favelas.
Se você ainda não leu a resenha aqui no site sobre o livro O Cortiço de Aluísio Azevedo, eu recomendo que você leia, pois lá falamos também um pouco sobre a estrutura dos cortiços.
Em São Paulo, onde se passa a história de Quarto de Despejo, o processo de favelização começou mais tarde, na década de 40 do século XX, com o movimento migratório, principalmente de nordestinos, para a cidade. A própria Carolina Maria de Jesus, autora do livro, é uma migrante, mas não do nordeste, pois ela nasceu em Sacramento em Minas Gerais.
Carolina morava na favela do Canindé que não existe mais. A favela foi retirada para a construção da Marginal do Tietê. O diário começa em julho de 1955 e mostra desde o início as enormes dificuldades que Carolina, mãe solteira, com três filhos, dois meninos e uma menina passava diariamente não apenas para conseguir comida, mas para sobreviver em um local de muitas brigas, sem esgoto, sem água, em que até para conseguir luz elétrica era preciso se submeter aos caprichos de um controlador que, além de cobrar, ainda ligava e desligava as luzes dos barracos ao seu bel prazer. As brigas dos vizinhos de Carolina, normalmente eram motivadas por excesso de álcool, mas também pela extrema pobreza que causa uma constante situação de irritabilidade à flor da pele. Não é fácil se estar em paz quando se tem fome.
Os dias de Carolina começavam quase que invariavelmente do mesmo jeito, tendo de ir buscar água em uma única torneira que servia à favela toda. No inicio do diário já havia fila, mas, com os anos, os moradores da favela aumentam. Ela relata a chegada de muitos nordestinos e como também a fila da água aumenta, pois continua sendo apenas uma torneira para tanta gente.
O que nos surpreende na leitura do diário é como Carolina era diferente das outras mulheres da favela. Ela não gostava de fofocas, não se metia nas inúmeras brigas, só queria paz para ler e escrever. Dizia: "Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar eu escrevia." Além disso, ela tinha uma fé incrível em si mesma e, mesmo tendo estudado tão pouco, acreditava que um dia seu livro seria publicado Por isso mesmo, não estranhe os erros de grafia que foram mantidos para dar mais autenticidade à obra, que é construída, claro, com uma linguagem bastante objetiva e simples, mas recheada de observações muito precisas sobre a vida e a pobreza.
Carolina tinha também uma disciplina que muitos aspirantes a escritor não possuem. Mesmo com uma rotina tão pesada de catadora, mãe e dona de casa, sozinha, sem ajuda de ninguém, ela ainda acordava de madrugada ou aproveitava qualquer momento para escrever.
Carolina foi descoberta pelo jornalista Audálio Dantas quando ele foi visitar a favela do Canindé para uma reportagem. Foi por intermédio dele que ela conseguiu que seu livro fosse publicado, em 1960, e é ele também quem assina o prefácio do livro de algumas edições.
Negra, semianalfabeta, a catadora de papel e ferro, Carolina de Jesus, com seus cadernos manuscritos, mostrou a quem não quer ver a situação aflitiva de quem vive em situação tão precária nas muitas favelas brasileiras. A fome está presente em muitas e muitas páginas do diário de Carolina a ponto de se tornar um personagem em carne e osso, ou talvez, apenas osso.
É a própria autora que diz: "quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de veludo, almofadas de cetim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” E ela ainda complementa dizendo que o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.
Então é essa visão da sua condição, é essa lucidez que espanta na narrativa de alguém que tem um único sonho: sair da favela e viver dignamente.
Carolina também faz a crítica aos políticos que só pisam na favela na época das eleições para obter votos, mas depois esquecem todas as promessas que fizeram. Diz que a cidade está doente e que as favelas são as suas úlceras, mas que os governantes ignoram o quarto de despejo.
Toda a narrativa é tão real que em um trecho que ela diz que está dormindo e sente a presença de um animal que passa por cima dela, eu me lembrei de uma época há vários anos quando eu era voluntária em uma favela para dar aulas de reforço de língua portuguesa. Eu tinha uma aluna, uma adolescente que ia muito mal na escola, mas que eu percebia que era muito esperta. Um dia perguntei porque ela ia tão mal na escola e ela me contou que dormia durante as aulas. Eu lhe aconselhei a dormir mais cedo para estar acordada, mas ela disse que não conseguia porque como seu barraco era de tábua e terra batida, durante a noite as ratazanas arranhavam as tábuas querendo entrar e ela morria de medo que elas entrassem e lhe mordessem. Então ela ficava a noite toda vigiando e dormia na escola onde se sentia segura.
Esse foi o relato mais doído que eu já ouvi de alguém e que nos mostra como existe um universo bem debaixo dos nossos olhos e que nós não conhecemos e pior, não cobramos de nossos governantes, políticas públicas para melhorar a vida nas favelas, que merecem ter ruas pavimentadas, iluminação, água e esgoto, postos de saúde, de polícia, escolas e creches como em qualquer lugar da cidade. Enquanto não entendermos que um governo deve governar para todos sim, mas, prioritariamente, para quem mais precisa, nunca conseguiremos melhorar a vida de toda sociedade.
Essa é a importância de Quarto de Despejo, mostrar para quem nunca colocou os pés em uma favela, como a vida pode ser tão difícil, quase insuportável, e talvez criar alguma empatia.
Há alguns períodos em que Carolina, muito cansada ou desesperançada, não escreve, mas seu livro diário vai até primeiro de janeiro de 1960 e essa data é simbólica para terminar o livro porque é um novo ano, uma nova década e mostra que nada mudou. Começa e termina com Carolina indo buscar água. Ou seja, são cinco anos de diário em que a rotina de fome, de brigas intermináveis na favela, da degradação, da falta de água, nada disso mudou ou teve qualquer melhora. E é desesperador mostrar isso.
Mais tarde, Carolina vai escrever outros livros, e com o dinheiro que ganhou de suas obras, ela conseguiu sair da favela, mas não da pobreza e morreu em um pequeno sítio na periferia de São Paulo.
Então, resumindo é um livro muito atual de crítica social. Quarto de Despejo fala da marginalização, seja do pobre, seja do negro, seja da mulher e de como as favelas ficam à margem da sociedade.
As favelas, também chamadas de comunidades, cresceram muito depois da década de 50, quando acontece o relato do livro. Hoje, estima-se que haja mais de 13 mil favelas no Brasil e mesmo que algumas tenham casa de alvenaria, a situação ainda é bastante precária. Além disso, quando Carolina de Jesus imaginou que as favelas seriam o pior lugar para se morar, o empobrecimento do povo brasileiro levou milhares de pessoas não para as favelas, onde não cabe mais ninguém, mas para as ruas. Ou seja, a situação ficou ainda pior para o pobre no Brasil.
Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=aGeXQiVej7A
FICHA TÉCNICA
Título Original – Quarto de Despejo
Edição Original – 1960
Edição utilizada nessa resenha – 2021
Editora Ática - São Paulo
Número de páginas – 198