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                     SAGARANA

          Como quase todo mundo da minha geração, li Sagarana, de Guimarães Rosa, pela primeira vez, quando ainda estava no colégio e, obviamente, obrigada pela professora de língua portuguesa. Naquela época, também como quase todo mundo, detestei o livro. Era difícil demais para a minha idade e para o meu repertório literário.

         Os anos passaram. Literatura virou minha área de pesquisa e, naturalmente, meu repertório cresceu. Depois de passar um semestre debruçada sobre Grande Sertão: Veredas em uma disciplina do meu doutorado, fiquei tão encantada por redescobrir Rosa que achei que deveria dar uma segunda chance à Sagarana, que é a primeira obra de escritor a ser publicada. E foi então que o reli.

       Não. Sinto informar, mas ele não é tão genial quanto Grande Sertão: Veredas. Mas, diga lá, qual livro é? Grande Sertão é a grande obra de nossa literatura e só os melhores romances de Machado de Assis, no meu entender, têm o mesmo nível.

          Entretanto, Sagarana é um bom livro e tem importância na obra de Rosa, justamente porque foi seu primeiro livro, escrito em 1937, mas só publicado em 1946. Como o próprio Guimarães Rosa explicou, o livro repousou durante longos sete anos, foi reescrito e somente depois, publicado pela Editora Universal, de seu amigo, Caio Pinheiro. É um livro de contos ou novelas. Nove ao todo, de tamanhos muito variados. O Burrinho Pedrês, o primeiro conto é o mais longo com exatas 62 páginas, enquanto todos os outros giram em torno de 30 páginas. E por que estou falando em número de páginas, uma coisa que não deveria ter a menor importância? Porque acredito que esteja aí uma razão para a maioria das pessoas que conheço ter abandonado o livro. O Burrinho Pedrês é muito longo e não deveria ser o primeiro. Desanima a continuação da leitura para quem não está familiarizado com a linguagem de Rosa. Como um conto não é pré-requisito para o outro, recomendo que se leia os contos mais curtos e depois  O Burrinho Pedrês. Somente o último conto e também o mais conhecido, A Hora e Vez de Augusto Matraga, deve mesmo ser o último a ser lido, pois o próprio Guimarães disse que ele é o conto síntese que fecha o livro.

Apenas dois contos são narrados em primeira pessoa e os outros sete em terceira pessoa e são todas histórias lineares, ou seja, o tempo não vai e volta, como em uma escrita fragmentada em que se encontra ações no presente e outras acontecendo no passado.

          Há elementos que dão unidade ao livro, características que são comuns a todos os contos. A primeira dessas características é a maneira como Rosa elaborou os contos. Lembra muito um contador de “causos”, uma figura comum no interior do Brasil. Além disso, nem só as pessoas têm vez nas histórias do livro, também os animais têm personalidade e são personagens importantes.

         A segunda característica é a linguagem de Sagarana, própria do sertanejo, dos vaqueiros, jagunços e donos de fazenda. Não é apenas uma linguagem típica desses personagens, mas uma linguagem que foi muito trabalhada por Guimarães Rosa. O próprio Rosa, em carta ao jornalista João Condé, explicou que, ao buscar seu estilo, não quis ficar limitado a nenhum tipo de regra. Disse o escritor: “Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições – no tempo e no espaço.” 

        Era exatamente isso. Guimarães Rosa não queria nenhuma limitação ou ficar preso a regras gramaticais. Se, por um lado, essa é uma das grandes riquezas do livro, por outro, é preciso de tempo para se acostumar com o estilo de Rosa e contos mais curtos no início do livro fariam muito melhor essa função. Então, se você estiver a ponto de desistir, minha dica é que você leia um conto ou vários mais curtos e depois volte ao início, já que os contos não se entrelaçam, um não é pré-requisito do outro, são independentes.

         E por fim, também o universo sertanejo, do interior de Minas Gerais, onde o livro é ambientado, distante do urbano, também é comum a todos os contos. Um universo que o escritor conhecia muito bem.

         Obviamente, passados mais de 70 anos de sua escrita original, o sertanejo de hoje já não é mais o mesmo do século passado. O ambiente mudou, a linguagem mudou e, provavelmente, também muitos hábitos e costumes. Mas a grandeza de um livro é justamente quando ele se torna atemporal como Sagarana. Pode ser que os sertanejos atuais tenham pouco a ver com o sertanejo do início do século passado, mas a essência humana, e nesse quesito, Guimarães é um mestre em retratá-la, permanece igual.

       Um bom exemplo de como Rosa consegue captar a essência humana é o meu conto preferido: Sarapalha. Nesse conto, dois primos, doentes, estão na frente de casa, sentados, conversando, olhando a vida passar e esperando pela morte, quando um dos primos resolve fazer confidências ao outro primo. Resolve contar segredos que envolvem a vida do outro primo. É claro, que nesse momento a relação entre ambos fica abalada. Toda vez que se esconde por anos um segredo de alguém com quem se convive diariamente, quando esse segredo vem à tona, a relação fica abalada. E isso é comum a qualquer ser humano, em qualquer lugar, em qualquer tempo.

         Um bom exemplo de como o escritor gostava de criar palavras e expressões é o próprio título do livro. O termo Sagarana é composto por duas palavras: saga, de origem germânica, que quer dizer lenda ou história familiar e rana que vem da língua tupi e significa semelhante. Desta forma, é possível dizer que a palavra sagarana significa algo parecido a uma lenda.

Vídeo resenha: https://www.youtube.com/watch?v=S2_3IGS0sSY

FICHA TÉCNICA

Título Original – Sagarana

Edição Original – 1946

Edição utilizada nessa resenha – 1984 – Volume faz parte da Coleção Mestres da Literatura Contemporânea

Editora Record – Rio de Janeiro

Número de páginas – 390 (Incluindo carta do autor a João Condé)

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