Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
SEMINÁRIO DOS RATOS
A escritora paulista Lygia Fagundes Telles começa sua carreira literária em 1938 como contista com apenas 15 anos. Seus primeiros livros são todos de contos. Só mais tarde, em 1954, ela lançará seu primeiro romance, Ciranda de Pedra, que fez enorme sucesso, e virou, inclusive, novela de televisão. Entretanto, mesmo tendo se tornado romancista, ainda continuou escrevendo contos.
Em virtude dessa grande produção de contos alguns contos se repetem em algumas edições, tanto como estratégia editorial, quanto pela mudança de editora. Assim o conto Seminário dos Ratos vai dar título ao livro lançado em 1977, mas também aparece em outro livro chamado Histórias de Mistério lançado em 2004.
Então não estranhe se você vir esse conto em outro livro, mas o que nós vamos tratar aqui nessa resenha e também vamos analisar porque cai em vestibular é, não apenas o conto, mas o livro todo, esse aqui lançado originalmente em 1977 e relançado pela Companhia das Letras em 2009 e que contém 13 contos. Na edição original existia mais um conto chamado O X do Problema que desapareceu nas edições mais recentes, a partir de 2009. Então eram 14 contos originalmente e agora são 13.
Como eu já disse, Seminário dos Ratos foi lançado pela primeira vez na década de 70, em plena ditadura militar. Então esse já é um elemento interessante para se entender o contexto de uma narrativa. Outro ponto fundamental é conhecer as características da escrita da autora. Lygia Fagundes Telles não é uma escritora qualquer. Muitos a consideram a melhor escritora brasileira do século XX, talvez rivalizando apenas com Clarice Lispector. E, na década de 70, ela já era uma escritora madura, com vários livros lançados.
E como é a narrativa de Lygia? À primeira vista, ou à primeira leitura, Lygia é uma escritora com forte predominância do realismo fantástico, mas não é um realismo fantástico comum. Ela vai costurar o elemento fantástico com um apurado olhar sobre o mundo em que vive, mas de uma forma meio escondida. É como se ela usasse o realismo fantástico como recurso para dizer o que não se pode ou não se quer dizer claramente. Ela não gosta de entregar de bandeja para o leitor todos os fatos, pelo contrário, ela quer fazer o leitor pensar, buscar o escondido do que a narrativa pretende.
É um livro em que os contos alternam o tipo de narrador. A grande maioria, 7 contos, o narrador está em terceira pessoa, 4 são em primeira pessoa no feminino, mas ainda há 2 em que o narrador vem em primeira pessoa, mas no masculino, além disso, muitos personagens são masculinos. Ao escrever sob o ponto de vista masculino ou abordar o universo masculino, isso já faz com que a autora saia de sua zona de conforto. Saia do seu lugar de fala, que é o seu próprio gênero. Só que na escrita de contos da Lygia, isso vai além. Não apenas ela aborda o ponto de vista masculino em alguns contos, mas o tempo todo, ela alterna os lugares das pessoas, dos animais e das coisas.
Um exemplo dessa alternância já aparece no primeiro conto do livro chamado As Formigas. As Formigas conta a história de duas primas que mudaram de cidade para estudar e foram morar em uma pensão. A prima que narra a história em primeira pessoa é estudante de Direito, como foi a própria Lygia. Como a outra prima estudava medicina, a dona da pensão mostra a elas uma caixa de ossos que o antigo hóspede, também estudante de medicina, havia esquecido. Como eram ossos de um anão, o que é raro, a jovem se interessou por eles e a dona da pensão deu para elas.
Logo na primeira noite uma prima tem um pesadelo com um anão e a outra percebe uma trilha grande de formigas que vinha por debaixo da porta do quarto até a caixa de ossos. A estudante de medicina joga álcool esperando que as formigas fossem embora. No dia seguinte, elas realmente tinham sumido, mas os ossos tinham mudado de lugar, como se o esqueleto do anão estivesse sendo montado pelas formigas. Na noite seguinte, a mesma coisa com a fila grossa de formiga seguindo até o caixote de ossos e trabalhando no esqueleto do anão. As primas ficam assustadas e com medo de que o esqueleto do anão acabe de ser montado pegam suas coisas no meio da noite e vão embora.
Vejam que tudo está deslocado de lugar. As humanas grandes e fortes não conseguem matar as pequenas formigas. As formigas, que não deveriam saber montar um esqueleto, o sabem. E, ao invés, das primas esperarem para saber o que acontecerá quando o esqueleto do anão estiver pronto, simplesmente fogem de madrugada.
Esse deslocamento de papeis é ainda mais explícito no conto Tigrela, em que uma amiga da narradora, chamada Romana, cria uma tigresa, desde filhote, como se fosse humana e com o tempo, ela vai realmente adquirindo hábitos de humanos, usava colar, bebia uísque. A tigresa chamada Tigrela passou a controlar a vida de Romana que passou a ter medo das reações do estranho animal.
Em outro conto, nomeado estranhamente com duas letras, WM, um homem que acredita estar em um hospício para ter notícias do tratamento da irmã, não é a irmã e sim ele o paciente. Mais uma vez a inversão de papéis.
Gosto particularmente do conto A Presença em que um jovem se hospeda em um hotel que só tem velhos, bagunçando toda uma organização há muito tempo sedimentada. O jovem parece não se importar com nada que afastaria qualquer jovem, como a piscina cheia de folhas em que nenhum velho nada, ou a comida insossa, ou a falta de diversão. Mas o contrario acontece. Os velhos se aborrecem muito com a presença do jovem, que pelo contraste mostrava aos velhos a sua condição, já que a autora diz que a velhice já é uma doença e o pior os fazia lembrar de como tinham sido um dia. O que nos leva a suspeitar que os velhos, não suportando a presença do rapaz, o tenham envenenado.
O que Lygia quer mostrar com todas essas inversões de papeis é que ninguém está completamente seguro em sua posição. E que depende sempre de onde se olha, do ponto de vista de quem olha, para que o quadro seja completamente outro.
Por fim, no último conto Seminário dos Ratos, que dá título ao livro, a inversão de papeis se avoluma, se intensifica justamente porque os humanos são governantes, homens poderosos que vão sendo dominados por ratos. A história se passa em uma casa de campo reformada, em que varias delegações estão reunidas para um seminário a respeito de roedores.
Começa o conto com o chefe das relações públicas, responsável por acomodar as delegações indo conversar com o Secretário do Bem Estar Público e Privado para lhe participar como havia organizado tudo. Eu já disse antes que esse conto foi escrito em plena ditadura militar, então a autora se valeu de ratos e poderosos para passar várias mensagens que não podiam ser ditas em virtude da censura imposta pelos militares. O delegado americano, por exemplo, era o diretor das classes conservadoras Armadas e Desarmadas.
Em outro momento, o Secretário do Bem Estar dizia que não se podia confiar em ninguém que havia sempre alguém com a praga de um gravador, até escondido. E por isso eles queriam manter a imprensa afastada. Aqui eu quero abrir um parêntese. Sempre que um governo ou um governante não é muito democrático, ele quer afastar a imprensa ou pior, falar mal da imprensa para que o povo pense que a imprensa mente. O que ditadores querem na verdade é não serem contrariados, não querem que as pessoas tenham opinião contrária, o que está longe de ser democrático. Em um estado democrático todas as pessoas têm de ter voz. Então, no conto, ao dizer que era uma estratégia manter a imprensa longe, a autora queria mostrar como o governo atua.
Quando eles acreditam que os ratos estão sob controle, o secretário diz ouvir um barulho, como o chefe de relações públicas não ouve nada, o secretário diz:
...
O secretário representa os militares acusando a esquerda e dizendo que o povo não passa de uma abstração. Há um trecho em que o secretário diz sofrer de gota e o chefe das relações públicas cantarola ironicamente, pode ser a gota d’água a música de Chico Buarque de Hollanda anunciando que o fim da censura e da ditadura estavam próximos. Enfim, há várias referências aquele período negro da história brasileira. O secretário pergunta de que safra é o vinho chileno que ele escolheu para servir e o rapaz diz que foi da safra de Pinochet. Para quem não sabe, Pinochet era o ditador de direita no Chile, na mesma época do lançamento do livro, responsável por milhares de mortes.
O barulho vai se intensificando, começa também um cheiro forte, o cozinheiro vem avisar que os ratos comeram toda comida e junto com os outros empregados, ele vai fugir, á pé porque os ratos haviam comidos os fios dos carros, dos telefones e avançavam sobre tudo. O chefe das relações públicas, com medo, rapidamente se escondeu em uma geladeira e fechou a porta. Depois de ficar muito tempo na geladeira encolhido como um feto, ele sai e vê que não há mais ninguém e nem qualquer móvel, mas da sala de debates vem um murmurejo secreto, como se estivessem todos ali reunidos debatendo, o que o fez correr quilômetros, mas quando olhou para trás o casarão estava todo iluminado.
Há muita simbologia em todo esse conto, que não traz nenhum nome, mas apenas cargos, e, na minha opinião, claramente, é a tomada do poder pelo povo que depõe a ditadura. Olha que interessante, as maiores autoridades em exterminar roedores que eles diziam que era uma praga que só cresce, vão ser justamente atacadas pelos ratos. Enquanto que a casa iluminada significa que o período de trevas tinha acabado. Quero lembrar que a ditadura só vai acabar no Brasil, em 1985, oito anos depois do lançamento desse livro.
Então uma pergunta pra você pensar é: quem são os verdadeiros ratos no conto?
Não falei de todos os contos, mas creio que esses resumem bem o espírito do livro. Resumindo os pontos principais:
- A maioria dos 13 contos é narrada em terceira pessoa, mas a autora se vale também de deslocamentos para primeira pessoa no feminino e no masculino.
- A escrita se utiliza do realismo fantástico, com temas de morte, medo e loucura, predominantemente.
- Por fim e talvez o ponto mais importante é que há uma constante inversão de papéis e deslocamentos de sujeitos, com o objetivo de tirar o leitor de sua zona de conforto e o fazer refletir.