Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
SOBREVIVENDO
NO INFERNO
Sobrevivendo no Inferno do grupo musical Racionais Mc's é o título do livro e se originou do CD de mesmo nome, lançado em 1997, e ganhou notoriedade como literatura quando foi publicado em volume e passou a fazer parte de leitura obrigatória de algumas instituições de ensino. Lembrando sempre que letras de canções são literatura, porque normalmente são crônicas ou poemas.
Antes de nós começarmos a falar do livro, é preciso falar do grupo, porque é o tipo de obra que teve muita influência da origem de seus autores. O grupo Racional MC foi criado em 1988 para se dedicar ao rap. Desde o início, tem a mesma formação original composta por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, todos paulistas. Só que enquanto Mano Brow e Ice Blue são do extremo da zona sul, Edi Rock e KL Jay são da zona norte. É como se eles representassem então a cidade toda, de norte a sul. Mas de que São Paulo nós estamos falando? Estamos falando da periferia. Então eram quatro jovens negros, pobres, moradores da periferia que vão compor canções sobre a vida nas periferias da maior cidade da América do Sul.
Nessa análise é importante se lembrar daquilo que eu sempre falo aqui no site, que é o lugar de fala. É muito diferente um sociólogo falando da vida na periferia, por mais que ele entenda do assunto, da visão daqueles que vivem o dia a dia da periferia durante anos e anos. Os Racionais, desde o começo, usam sua música para nos contar sobre as inúmeras dificuldades, a desesperança de quem nasceu e cresceu à margem da sociedade, em sua periferia.
O rap do grupo é o que eles mesmos chamam de rap político. É uma música de denúncia, que quer criar consciência nas pessoas, que quer alterar algo que está muito sedimentado. E o que é isso? É a condição desses jovens. São jovens que convivem com a violência constantemente, seja em casa, seja na periferia, seja violência policial. É uma violência que está tão arraigada, tão normalizada, que ninguém questiona mais por que é assim.
Então aí já entra o título do livro: Sobrevivendo no Inferno, que se refere a essa vida violenta que, obviamente, é um inferno. E é uma luta incessante para tentar escapar, ou pelo menos, sobreviver. Seja a pobreza, o tráfico de drogas, a falta de estudo e de oportunidades, como se fosse impossível sair do inferno, quando muito, male e mal, sobreviver.
O CD é composto de 12 músicas, mas uma delas é somente orquestrada. Desta forma, o livro é composto de 11 letras e da introdução do Professor Acauam de Oliveira, que consegue nos dar uma visão geral da importância da obra. Na introdução, Acauam lembra que essa organização social tão genocida é uma herança da escravidão e que foi aperfeiçoada para pior durante a ditadura militar. Porque os militares não governaram para os mais pobres, mas para os mais ricos, de preferência, brancos.
Na década de 90, os Racionais já tinham uma projeção em São Paulo, mas foi somente com o disco Sobrevivendo no Inferno, lançado em 1997, que vendeu mais de um milhão e meio de cópias, que o grupo ganhou projeção nacional e até internacional, mesmo os integrantes do grupo não dando entrevista e não comparecendo à entrega de vários prêmios que eles ganharam. E por que eles não dão entrevista? Por que eles acreditam que a mídia continua repetindo os mesmos erros dos governantes e condenando os jovens da periferia simplesmente pela sua cor e sua condição financeira. Como jornalista, eu acredito que isso esteja mudando, mas também acho que eles têm certa razão. Somente há pouco tempo nós começamos a ver com frequência jornalistas negros e mais do que isso, começamos a ver que não há tanto um preconceito embutido nas matérias jornalísticas, mas que durante muito tempo houve sim.
Quase todas as canções de Sobrevivendo no Inferno falam do crime, o que não significa que haja algum tipo de apologia ao crime, muito pelo contrário, em todas as letras o criminoso sempre se dá mal, ele sabe que vai se dar mal, é quase que um destino já anunciado. Entretanto, o crime figura com tanta frequência nas letras porque ele tem essa mesma frequência na vida desses jovens. O crime faz parte do cotidiano. Todos eles conhecem ou são amigos de jovens que o crime arrebanhou e que acabaram presos ou mortos. Para quem mora na periferia isso não é só noticia de jornal, é o dia a dia. É preciso entender que o crime é o caminho mais fácil pra quem vive em um local de tanta violência e pobreza. Para acabar com o crime não é só prendendo os criminosos, precisa acabar com a causa, precisa melhorar a condição de vida da população mais pobre do Brasil. Essa população tem de ser a prioridade de qualquer governante.
Quando ouvimos governantes dizerem absurdos como bandido bom é bandido morto, significa que esses governantes, além de não terem a menor consideração pela vida humana, querem a saída mais fácil. Eles não querem trabalhar, não querem se debruçar sobre políticas públicas que favoreçam os mais pobres, que combata o crime e, se o crime acontecer, que haja a reabilitação do preso. É como se, para eles, os mais pobres devessem ser eliminados. Assim foi na chacina do Carandiru, quando foram mortos 111 detentos desarmados, a maioria réus primários que talvez, se tivessem dinheiro para pagar um advogado, nem estariam presos, e tantas outras tragédias como essa que constantemente acontecem pelo Brasil.
Na canção "Diário de um Detento", um preso chamado Jocenir ajudou Mano Brown a fazer a letra e ainda pediu para que outros detentos lessem para ver se a letra estava de acordo. A canção fala justamente do dia da chacina do Carandiru em 1992.
Em um trecho diz:
O ser humano é descartável no Brasil
Como modess usado ou Bombril
Cadeia guarda o que o sistema não quis
Esconde o que a novela não diz.
A comparação de um ser humano a modess usado, é dizer que aquele ser humano tem de ir para o lixo. Que ninguém se importa se ele morrer.
Já na canção “Periferia é Periferia” há várias estrofes que eu selecionei que relatam bem essa condição desumana e sem futuro nas periferias e que tantas vezes leva ao crime.
Periferia é periferia
Milhares de casas amontoadas
Periferia é periferia(em qualquer lugar)
Gente pobre
Periferia é periferia
Vários botecos abertos, várias escolas vazias
Periferia é periferia
Molecada sem futuro, eu já consigo ver
Fico triste por saber e ver
Que quem morre no dia a dia é igual a eu e a você.
Em outra canção chamada “Qual mentira vou acreditar” o tema é a batida policial que acontece quando os jovens pretos e pobres são abordados pela polícia, o que é constante.
Quem é preto como eu já tá ligado qual é
Nota fiscal, RG, polícia no pé
E o policial, provavelmente branco, responde:
Escuta aqui...
O primo do cunhado do meu genro é mestiço
Racismo não existe, comigo não tem disso
É pra sua segurança.
E o jovem negro responde:
Falô, falô, deixa pra La
Vou escolher em qual mentira vou acreditar.
Violência, racismo, pobreza, drogas, crimes são os temas das músicas. Quando você for ler ou escutar perceba não apenas o relato de uma situação que perdura há décadas nas periferias e que só piora com o empobrecimento ainda maior do nosso país, mas também perceba a crítica de como não há vontade política para se fazer algo para alterar a situação. Fica claro como o Poder Público quer colocar essas pessoas bem na periferia mesmo, bem à margem da sociedade para não se enxergar.
Outra coisa muito interessante é entender que a estética das músicas é uma estética diferente, que não é bem comportada, que acompanha o tema das letras que é violenta também.
Por fim, há toda uma referência à religião cristã. A capa do livro com a cruz e a lombada dourada do livro nos remetem a uma bíblia. E na letra da canção "Fórmula Mágica da Paz", os Racionais perguntam
Na parede, o sinal da cruz
Que porra é essa? Que mundo é esse? Onde tá Jesus?
Mais uma vez o emissário
Não inclui o Capão Redondo em seu itinerário.
Lembrando, pra quem não mora em SP, que Capão Redondo é justamente um bairro periférico de São Paulo, de onde veem Mano Brown e Ice Blue. Ou seja, na visão deles, Jesus passou longe da periferia.
As fotos são do fotógrafo Klaus Mitteldorf e que, justamente por serem em branco e preto, conversam com toda a estética do livro e conseguem retratar o cenário de pobreza da periferia.
É um livro pequeno, fácil de ler, mas que requer atenção. Justamente por serem letras de canções, cada frase, cada palavra tem razão de ser. Em textos pequenos como letras de canções é preciso dizer tudo de forma sucinta.
O livro é também uma lição de resiliência quando na canção "Capítulo 4, versículo 3", depois de ouvir que 60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial e que a cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras, mas que nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros, Mano Brow diz:
Permaneço vivo, prossigo a mística
Vinte e sete ano contrariando a estatística.
Genial, não é? Desta forma, os Racionais conseguem ser a voz de quem não tem voz!
Vídeo-resenha: https://www.youtube.com/watch?v=Ei_igkZ-IQc
FICHA TÉCNICA
Título Original – Sobrevivendo no Inferno
Edição Original – 2018
Edição utilizada nessa resenha: 2021
Editora - Companhia das Letras - SP
Páginas: 144