Miriam Bevilacqua
Literatura, Comunicação,Educação
VESTIDO AMARELO
- Cada um tem o amigo que merece!
Ele disse isso assim, como se fosse apenas uma frase de efeito, quase engraçada, mas ela não achou graça nenhuma. Vasculhou na alma e na memória e, sinceramente, não achou que ela merecesse esse tipo de amigo.
Ainda tentou desculpá-lo, o trabalho intenso, as redes sociais, as séries de tevê, o dia a dia corrido, o trânsito, mas nada respondia às suas perguntas. Viviam o mesmo dia a dia, mas amigos eram prioridade em sua agenda. Nem precisava escrever seus nomes. Eles estavam lá, em todas as páginas, todo o tempo. Sobrepunham-se.
Amizade é um termo batido. Implica um sem fim de coisas e sentimentos, mas ela não acreditava que pudesse ser interpretado tão friamente como ele pretendia. Se tem algo que amizade requer, que faz parte da sua estrutura mais elementar, essa coisa chama-se: atenção.
Amizade sem atenção é manca, fraca, quase raquítica. Sofre de fome, de falta de saúde para viver muitos anos, e fenece assim, devagar, sem que ninguém perceba.
Pensou tudo isso, mas não disse nada. Ele já estava envolvido em outro grupo que ria, sabe-se lá do quê. Ela também queria rir. Era boa em dar e provocar risada. Entretanto, alguma coisa lá no fundo tinha se quebrado. Talvez já estivesse trincado há muito tempo. Talvez houvesse sofrido uma queda, uma batida forte e ela só tivesse esquecido.
Sempre houve minas espalhadas pelo chão que ela habilmente se desviou e elas jamais explodiram. Havia gavetas fechadas e chaves escondidas. Havia fotos arrancadas do álbum e substituídas por propagandas amareladas de café. Havia o medo de não mais vê-lo, se ela forçasse a porta.
De repente, o último parafuso se soltou e a porta despencou sozinha, fazendo um enorme barulho dentro de si. Olhou em volta, mas ninguém escutou. Respirou aliviada. Gostava de espaços abertos, sem portas. Conseguia respirar.
Passou a mão pelo seu vestido amarelo e confiou na fantasia. Quem lhe visse assim, só veria o Sol, não enxergaria a chuva insistente e o vento forte, quase assustador, que passou pelo buraco da porta e que levava anos de amizade solitária para outras terras, para tão longe que seus olhos não mais a viam.
Esperou a bonança! Afinal, ela sempre vinha depois da tempestade.
Não estava de luto. O vestido era amarelo.
SP 04/04/23