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VOO SOLO

                Cheguei ao circo numa manhã fria de junho. Bem cedinho, às 7 da manhã, hora de quem vem disposta a trabalhar. Olhei em volta e estavam todos muito ocupados. Não tinha sido a primeira a chegar. E quem chega depois, espera quietinha a sua vez, sem reclamar.

          Vi o palhaço e pensei que seria bem bacana ocupar esse lugar, afinal, não há nada melhor no mundo do que fazer os outros sorrirem. Palhaço não briga, não discute, palhaço só faz palhaçada.

            Estava rindo quando a pomba saiu voando da cartola do mágico. Imediatamente quis ser mágico, usar aquela roupa preta elegante, ter uma varinha e fazer coisas brotarem do nada.

          Desviei os olhos para o domador de animais. Os animais obedientes seguiam todas as suas ordens sem questionar. Aquele elefante enorme em um banquinho fazendo exatamente o que domador lhe indicava.

            Estava quase me decidindo pelo cargo de domador quando vi a bailarina. Toda de cor-de-rosa, com um lindo coque na cabeça, enfeitado por uma pequena coroa. Sua maquiagem de boneca e sua roupa armada de tule imediatamente me convenceram. Eu queria ser bailarina e só rodopiar e sorrir para sempre.

            O administrador do circo me chamou. O administrador tinha uma roupa que brilhava como se fosse de ouro. Pensei em quanto dinheiro o circo deveria dar, mas, claro, o cargo de administrador não estava vago. Ele me apontou o trapézio. Por que altura? Por que correr riscos? Com tanta coisa mais fácil pra se fazer aqui no chão!!

            Só pensei. Descobri que a escolha não era minha. Na chegada ao circo, o trabalho já estava decidido e eu só podia acatar.

            Olhei o trapézio. Era alto de verdade. Não vi lona embaixo, o que me deixou ainda mais assustada. O administrador ordenou que eu subisse no trapézio. Quando eu estava no primeiro degrau, colocou a primeira alma no meu ombro e, a cada degrau, acrescentava mais algumas. Quanto mais eu subia, mas pesadas elas ficavam e mais difícil de equilibrá-las. Ninguém parecia notar que eu não estava conseguindo. Cada um estava entretido consigo próprio. O palhaço rolava no chão, o domador treinava os animais, a bailarina rodopiava e o mágico usou sua própria mágica para desaparecer.

            Cheguei ao topo do trapézio com um peso muito maior do que meus ombros podiam suportar. Elas escorregavam e eu tinha que esticar os braços para pegá-las, enquanto tentava segurar as outras, manter uma ordem sem ordem no caos. Subi no balanço do trapézio e quis desistir. Jamais conseguiria, mas alguém me empurrou para um voo cego antes que eu pudesse dizer alguma coisa ou chorar.

            Não sei por quanto tempo eu me balancei no ar. Por quanto tempo as almas se equilibraram em mim, até que eu não conseguia mais alcançá-las, por mais que eu esticasse meus longos braços. Elas iam caindo e eu sem poder fazer nada, me equilibrando precariamente naquele trapézio que insistia em balançar veloz, de lá pra cá, sem chegar a lugar algum.

            De repente, não havia mais peso qualquer, mas um sentimento enorme por ter fracassado, por ter deixado que elas caíssem no nada. Aquelas almas que eu havia aprendido a conhecer e a amar. Foi quando vi o dono do circo lá embaixo, segurando todas as almas, aquelas que eu havia deixado cair, e só então percebi que elas sempre estiveram e vão estar seguras. A lona sempre havia estado lá. Eu que não conseguia enxergá-la.

           Ele olhou pra mim, sorriu e eu compreendi o que ele queria que eu fizesse. Peguei impulso, o maior impulso de que fui capaz. Não fechei os olhos, mas mirei-os pra frente e me lancei soltando as mãos. Era meu primeiro salto. Um voo solo.  Meus sonhos podiam enfim respirar.

           

SP 22/11/2022

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